Arco dos Vice-Reis

Arco dos Vice-Reis

Goa [Velha Goa], Goa, Índia

Equipamentos e infraestruturas

Desde a antiguidade que a forma mais distinta de homenagear um visitante é proporcionar ‑lhe uma entrada solene, o que na maior parte dos casos tem como ponto alto, simbólico, o franquear de uma passagem, um portal, ou seja (na maior parte dos casos), um arco. A isso acrescem‑se outras distinções simbólicas, como as chaves da cidade ou o diploma ou medalha de cidadão honorário. A interminável lista de entradas solenes está ornada de arcos efémeros armados para o efeito, sendo que muitos deles foram depois passados para pedra, construindo assim para a posteridade o respectivo testemunho, numa tentativa de imortalização do ato e do homenageado. Na maior parte dos casos as homenagens fazem‑se também para glorificar quem as produz, pois o(s) respectivo(s) nome(s) fica(m) inevitavelmente associado(s) à distinta personalidade e por essa forma também imortalizado(s).
Em boa medida assim se explica a montagem iconográfica e arquitetónica que configura o Arco dos Vice‑Reis de Goa, onde avulta a figura de Vasco da Gama. Produzida na Porta do Cais ou da Fortaleza da muralha de Goa, mediava a passagem entre o Terreiro do Paço e o Terreiro dos Vice‑Reis e a Rua Direita. É que, pelo menos formalmente, a iniciativa ficou a dever ‑se a um bisneto do homenageado, Francisco da Gama, controverso vice‑rei da Índia entre 1597 e 1600 e 1622 e 1628. Celebrava‑se então o primeiro centenário do feito da primeira armada portuguesa que, saída de Lisboa em 1497, venceu a passagem marítima entre o Atlântico e o Índico e, assim, chegou à Índia em 1498. O Arco dos Vice‑Reis resulta, pois, da primeira comemoração do feito marítimo capitaneado por Vasco da Gama, sendo interessante que o nome o não indicie. Curiosamente é do mesmo ano a decisão de se criar em Goa uma Torre do Tombo, ou seja, um outro repositório de memórias.
Conhece‑se com algum detalhe o processo, pois além de alguns documentos, Diogo do Couto descreve‑o nas suas Obras inéditas…, bem como a cerimónia evocativa e de inauguração no dia de Natal de 1597, pois nela teve papel ativo. Note‑se que Vasco da Gama faleceu em Cochim precisamente no dia de Natal de 1524. A decisão da encenação honorífica da Porta do Cais fora referendada pelo Senado da Câmara, tendo o projeto sido entregue ao engenheiro‑mor Júlio Simão, mas poderá ter correspondido a um desejo de Filipe II que, contra a vontade dos governadores de Portugal em Madrid, decidiu nomear o jovem vice‑rei um ano antes e, se assim foi, tê‑lo‑á incumbido dessa tarefa antes da partida. O novo vice‑rei fez a sua entrada solene na cidade a 1 de junho de 1597, segundo Diogo do Couto já como forma de celebração: "no mez de junho em que o Conde Almirante tomou posse da India se comprirão cem annos que seu bisavó a descobrio."
Importa dizer que o autor do projeto e diretor da obra, Júlio Simão, foi para a Índia precisamente na armada de Francisco da Gama, pelo que esta terá sido uma das suas primeiras obras no exercício daquele cargo. A obra terá, pois, demorado cerca de meio ano e produziu um efeito de monumentalização do próprio Palácio dos Vice‑Reis ou da Fortaleza. Com efeito, já há quatro décadas que o antigo castelo, reformado por ordens de Afonso de Albuquerque na década de 1510, era sujeito a obras de transformação numa estrutura palatina sem, contudo, perder a sua expressão castrense. Desenvolveu‑se organicamente, casa a casa, de telhado de tesoura em telhado de tesoura. Nesse processo organizara‑se uma sala de atos dando em sacadas para uma varanda sobre a porta e, para ela, uma escada que subia àquela varanda diretamente do terreiro, imediatamente a poente da porta da muralha. Escada que era quase exclusivamente utilizada para entradas solenes, que tinham o seu ponto alto no ato da sala a que dava acesso. Articulava‑se na perfeição, quase em continuidade, com o Cais dos Vice‑Reis. Também do lado de dentro, no Terreiro dos Vice‑Reis, junto ao arco, adossada à capela do paço, ou seja, do lado nascente, uma escada ao ar livre acedia ao mesmo espaço.
Tudo isso conduz‑nos a uma curiosa e paradoxal constatação: o arco, indubitavelmente do tipo triunfal, não era ultrapassado nas entradas solenes, designadamente as dos vice‑reis. Era, pois, uma instalação celebrativa que invocava o modelo dos arcos de triunfo clássicos, mas que não funcionava enquanto tal e cuja designação corrente não denunciava o objeto da celebração. Por outro lado, o facto de, na prática, estar integrado num complexo palatino bem mais vasto, precisamente no ponto de articulação com o pano da velha muralha, condicionou o seu desenho ao ponto de ter apenas expressão para o lado exterior, norte, de entrada, sendo que para o interior essa expressão foi reduzida ao mínimo. Acontece que o tipo clássico de arco triunfal é tendencialmente simétrico entre as faces.
O Arco dos Vice‑Reis tivera um antecedente efémero no preenchimento de um rombo propositadamente feito na muralha junto à Porta da Ribeira, frente a São Martinho. Fora ordenado pelo vice‑rei João de Castro em 1546 para celebrar, com a sua própria entrada solene, a vitória que atingira em Diu. As críticas que tal ato mereceu poderão explicar o seu esquecimento sem passagem à pedra. Mas o referente clássico ficou, sendo hipotética a inspiração do desenho do novo arco no Livro IV de Sebastião Serlio, editado em Veneza em 1540. Note‑se o recurso a um dórico rústico, segundo o qual se compõe o revestimento do arco propriamente dito em silhares lisos e pilastras em vez de colunas, o qual é sobrepujado por uma estrutura essencialmente decorativa em jeito de frontão, com um nicho onde se alojou a estátua de Vasco da Gama, próxima do tamanho natural.
No friso dórico o espaço entre as métopas é alternadamente ornado com a esfera armilar manuelina e os gamos das armas dos Gamas, devendo ali ter existido uma superfície onde a inscrição em bronze, que hoje está no interior do arco, deverá ter sido fixada inicialmente. Nela se lê "REINANDO ELREI D. PHELIPE 1º POS A CIDADE AQUI DOM VASCO DA GAMA 1º CONDE ALMIRANTE DESCOBRIDOR E CONQVISTADOR DA INDIA, SENDO VIZO‑REI O CONDE DOM FRANCISCO DA GAMA SEV BISNETO O ANO DE 97" e seguindo‑se a assinatura da obra: "IVLIVS SIMON ING. MAG. INV." Também no interior do arco existe uma outra inscrição, bem mais longa e em pedra, sobre cartela de clara inspiração flamenga.
A distinção do(s) Gama(s) sofreu expressiva mas anónima contestação, sendo a estátua destruída à socapa dias antes do final do vice‑reinado de Francisco da Gama e correspondente partida em finais de 1600. O nicho vazio acabou sendo ocupado por uma imagem de Santa Catarina. No entanto, a população em geral pugnava pelo retorno de uma imagem do almirante ao nicho, o que deu origem a uma surpreendente e salomónica decisão do Senado da Câmara de 6 de dezembro de 1606: acrescentar um nicho em andar sobre o original, para o qual se mudou a imagem da padroeira, e colocação de uma nova estátua de Vasco da Gama no seu posto original. A solução era obviamente de menor qualidade estética.
Assim se vislumbram as razões pelas quais o arco celebrativo do grande feito capitaneado por Vasco da Gama nunca tenha sido designado de forma a invocá‑lo. É apenas mais um paradoxo a somar ao facto de não ser bem um arco de triunfo e nem sequer ser usado como tal, mas apenas um aproveitamento de uma porta da muralha, aliás de origem islâmica. Porém, a história não se resume a isto.
Acontece que, como a maior parte dos edifícios da cidade, o próprio paço e a muralha, com o tempo a porta acabou por ruir, mais precisamente em 1951. Baltazar de Castro, engenheiro da Direcção‑Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, proveu e projetou a sua reconstituição entre 1952 e 1954 de acordo com a doutrina que então se praticava: regresso à pureza original. E assim se refez a porta, agora finalmente um arco triunfal, com apenas um nicho de altura, sendo que a imagem de Santa Catarina foi pousada sobre o arco do lado de dentro, prateleira que nunca existiu. Claro que o desaparecimento do paço e da muralha tornou necessária a construção de uma edícula para albergar o nicho, estrutura que hoje se recorta no fundo em palmeiral e não no reboco caiado do paço. Talvez responda melhor aos desígnios iniciais que a obra inaugurada no dia de Natal de 1597.

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