Fortaleza
Qal’at al Bahrain [Barém], Golfo Pérsico | Mar Vermelho, Barém
Arquitetura militar
Ao ocuparem a fortificação árabe que aí existiria, os portugueses vão, não apenas introduzir os princípios dos tratados renascentistas da arquitetura militar da época, como também conferir-lhe as linhas que ainda hoje ostenta. Rodeada por um fosso, a fortaleza tem a forma de um pentágono irregular em que a muralha paralela ao mar tem cerca de cento e dez metros, quebrando-se sucessivamente, e no sentido dos ponteiros do relógio, em troços de setenta, cento e trinta, noventa, e cento e vinte metros até circunscrever a figura geométrica. Os quatro baluartes portugueses estão implantados nos cantos noroeste, sudoeste, sul e sudeste, sugerindo que defendem a fortaleza mais do lado interior do que da costa. Os dois baluartes da muralha virada a ocidente são aqueles que denotam uma configuração regular da fortaleza e melhor espelham os princípios dos tratados renascentistas, perfeitamente orientados a noroeste e sudoeste. Construídos em alvenaria de pedra, os baluartes avançam sobre o fosso e apresentam dimensões diferentes, mais pequeno o de noroeste, com frentes de cerca de doze e quinze metros, e maior o de sudoeste, cujas cortinas atingem cerca de trinta metros; segundo Rafael Moreira, este, além de ser o que melhor representa o trabalho do mestre Inofre de Carvalho, é também o primeiro em que se descobrem as técnicas e linhas mais avançadas à época. Compõe-se de duas casamatas abobadadas e uma câmara de segurança, equipadas com bombardeiras e orifícios para escoamento de fumos. Dessas câmaras chegava-se por uma escada de dez degraus a uma plataforma de acesso à fortaleza e ao caminho de ronda, não ao jeito dos castelos medievais, mas por um corredor que percorre a muralha exterior. Iniciadas em 1561, sob direção de Inofre de Carvalho, as obras irão prolongar-se por sete anos, com material (100.000 pedras) que terá vindo da Ilha de Jidda, a uns escassos quilómetros a ocidente do Barém.
As obras de reconstrução e ampliação da fortaleza refletem a importância não só do comércio das pérolas, mas sobretudo da rota marítima para a Índia e China, bem como as rivalidades entre os portugueses, persas, ormuzis e turcos otomanos, visto que as potências ocidentais ainda estavam para chegar. Inofre de Carvalho alarga e eleva as esplanadas e reforça as muralhas, mas a sua marca ficará impressa na construção dos massivos baluartes e na grande torre‐esporão edificada sobre a muralha sul, bem como no reforço do fosso com um muro em toda a sua extensão. Os baluartes são acoplados às antigas torres e não as destroem. Dispõem de dois níveis de defesa de fogo, um proveniente das casamatas e o outro feito do topo dos terraços. Cada baluarte tem, como se disse, duas casamatas orientadas ao eixo do fosso, acessíveis por escadas com exaustão de fumos. No baluarte sudoeste as casamatas têm, em vez de cúpulas, uma abóbada de berço sustentada por dois arcos. Os baluartes possuem ainda orelhões, os quais evitavam o ricochete eventualmente provocado pelo fogo inimigo, que poderia de alguma forma atingir as casamatas. O quarto baluarte, mais baixo, de planta elíptica e no canto sudeste, surge como uma plataforma para artilharia sem casamatas; provavelmente não será já trabalho do mestre Inofre de Carvalho, mas poderá até ser parte de uma campanha de trabalhos anterior ao cerco turco de 1559. A meio da muralha sul, como já se referiu, o arquiteto vai construir uma possante torre‐esporão que avança sobre as cortinas elevando‐se à altura de vinte e quatro metros, constituindo dessa forma o ponto mais alto da fortaleza e aquele que dispõe de melhor vista sobre o sertão, de onde se supunha que pudesse vir também perigo de ataque.
Embora avançando sobre a cortina, a torre dispõe de um corredor que permite a circulação e o acesso entre os bastiões sul e sudoeste. O fosso, manda o mestre alargá‐lo até dez metros e na contra‐escarpa construir uma parede de reforço. Os vestígios do donjão ou, se quisermos empregar uma linguagem medieval, da torre de menagem, não foram alvo ainda de quaisquer escavações ou reconstrução e só esses trabalhos, um dia, nos poderão transmitir uma base séria para a definição do que teria sido realmente essa construção, pesem embora as conjecturas suscitadas por representações portuguesas coevas. A fortaleza sempre se deparou com graves problemas no tocante ao acesso das naus, já que a barreira de corais e o constante assoreamento da costa o impediam. Datada de 1610, a carta do rei ao vice‐rei Rui de Távora testemunha o relatório de A. Pinto da Fonseca, que nos revela que o forte era totalmente inútil, por encontrar‐se longe do mar (a um tiro de canhão de distância) e cercado de baixios que impossibilitavam a aproximação das naus, permitindo apenas o acostar de pequenas embarcações, e mesmo isso só na maré‐cheia. Por essa razão existia um canal que facilitava o aproximar dos navios à costa, mas não impedia que os ditos baixios fossem sempre um óbice ao acostar dos navios. No início do século XX, entre 1909 e 1912, Mariano Saldanha dá‐nos conta de que a fortaleza está muito delapidada e quase reduzida a escombros pelo pouco respeito que as populações entretanto manifestaram pela fortificação, usando nomeadamente parte da pedra para outras construções. Entre 1954 e 1970, desenvolvem‐se escavações arqueológicas orientadas por equipas dinamarquesas, que serão continuadas entre 1977 e 1987 por arqueólogos franceses dirigidos por Monik Kervan e depois de 1989 sob direção de Pierre Lombard e das autoridades baranis, que têm a seu cargo a supervisão das campanhas arqueológicas e trabalhos de recuperação entretanto desenvolvidos. Sem descaracterizar a autenticidade dos vestígios e estrutura da fortaleza, as campanhas de recuperação do forte foram, segundo relatório da UNESCO, para além do recomendável, e, conforme assinalam, demasiado extensivas. Todas estas campanhas, para além de terem contribuído para reescrever a história do sítio através dos estudos e escavações que permitiram analisar os vários séculos de ocupação humana do local, foram fundamentais para a preservação dos vestígios e sobretudo para chamar a atenção da população e governantes para a importância do monumento, que culminou com a sua recuperação e candidatura à lista do património mundial da UNESCO, pelo seu valor exemplar como sítio onde o encontro de culturas se fez por períodos continuados que deixaram as suas marcas e vestígios profundos. Como resultado desse movimento em favor da preservação do forte e do sítio de Qal’at Al Bahrain, o governo do emirato promove a recuperação da fortaleza, que se encontra praticamente concluída à data da inscrição na lista de património mundial. Nessa reconstrução, levada a cabo a partir de 1987, foram usados materiais selecionados, como a pedra existente no local e que era resultado das derrocadas provocadas pelo abandono a que o forte fora votado, ou outra, localmente chamada farush, que provém das praias da ilha, bem como idêntica argamassa. A partir de 2007 previa‐se que se reiniciassem os trabalhos de reconstrução do donjão ou torre de menagem, que até então conservava apenas dois dos seus pisos.