O Sul (Sudeste-Sul)

Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.

Três importantes capitanias hereditárias foram o núcleo inicial de povoamento da região Sudeste: Espírito Santo (Vasco Fernandes Coutinho), São Tomé (Pêro de Góis) e São Vicente (Martim Afonso de Sousa). Antes, em alguns pontos da costa, houve feitorias de que não restam vestígios. A vila de São Vicente, que se afirma ter sido a primeira do Brasil, fundada pessoalmente por Martim Afonso de Sousa em 1532, fez‐se na povoação que se tinha criado provavelmente junto a uma primitiva feitoria e depois foi mudada de lugar. É interessante notar que em vários casos há vilas que foram transferidas para outra localização mais adequada. Tal ocorreu no Espírito Santo, onde a vila da Vitória fez deixar para trás a Vila Velha. E mesmo na vila de São Vicente o porto logo foi substituído por outro mais próprio, sediado noutro núcleo urbano fundado em 1545 – Santos.

Estes exemplos apontam para um dado significativo, que é a complexidade do processo de desbravamento do território de que estas vilas foram os pólos iniciais. Os relatos repetem as várias dificuldades, das lutas com o gentio ou com corsários estrangeiros até às barreiras geográficas. Há como que uma instabilidade que decorre da natureza prática do método e que é preciso ter em conta para avaliar a efetiva dimensão do processo de desbravamento. São Paulo foi a primeira vila criada no planalto, em 1560. A distância da costa não é, aparentemente, muita, mas a necessidade de vencer a Serra do Mar manteve a região num relativo isolamento, que se revela nas diferentes tipologias da arquitetura rural – os engenhos na costa e as fazendas no interior – e é visível também nos próprios materiais – a pedra no litoral e a taipa que se preservou no planalto.

Com efeito, um dos aspectos mais interessantes da herança patrimonial desta área é o facto de se terem conservado importantes exemplares das velhas casas dos desbravadores do planalto, os bandeirantes. São edifícios cuja beleza reside precisamente na sua sobriedade, revelando um sábio equilíbrio de proporções. São casas de planta quadrada, com paredes de taipa de pilão e cobertura de telha em quatro águas com beirado saliente, permitindo a proteção da taipa. Os dois sectores da casa evidenciam‐se na planta, o de receber à frente e o de viver na parte posterior. Na frente, ladeando um alpendre central aberto, ficavam o quarto de hóspedes e a capela. No centro da habitação, e normalmente sem iluminação direta, ficava o salão maior. Na fachada é surpreendente o detalhe do trabalho dos esteios de madeira e a beleza da conjugação dos cheios e vazios: os pequenos vãos quadrados do quarto e da capela enquadrando o alpendre central.

Destas casas rurais, construídas em sesmarias ao redor de São Paulo, resistiram algumas ainda do século XVII, como a Casa do Sítio de Santo António, em São Roque (SP), a do Sítio do Padre Inácio, em Cotia (SP), a do Sítio Querubim, em Araçariguama (SP), até às mais recentes, já do século XVIII, como a do Sítio do Mandu, em Cotia (SP), ou a do Tatuapé, em São Paulo (SP). No Sítio de Santo António destaca‐se ainda a Capela, de construção posterior à da casa mas também da iniciativa do bandeirante Fernão Pais de Barros. Tem um alpendre externo e um campanário lateral, numa composição que se pode, e deve, associar às pequenas igrejas das missões jesuítas. Mas o que é especialmente interessante nesta capela é a fachada, totalmente em madeira, com treliças e balaústres criando uma espécie de biombo que filtra a luz para o interior. O interior é um dos mais belos da arquitetura paulista. Nos retábulos, no púlpito com a águia bicéfala dos Habsburgo, e na pintura em brutesco do teto da capela‐mor revela‐se uma síntese dos valores estéticos do maneirismo filtrados pelos artesãos populares que os executaram. O mesmo se pode dizer dos retábulos da Capela de Nossa Senhora da Conceição da Fazenda Voturuna (SP), onde frutos tropicais convivem com elementos de inspiração plateresca.

A par da fundação da vila de São Vicente, Martim Afonso de Sousa fez construir também o primeiro engenho de açúcar do Brasil, o Engenho de São Jorge dos Erasmos, em Santos (SP), cujas ruínas pertencem hoje à Universidade de São Paulo. Em Ilha Bela (SP), ainda existem o Engenho Santana, que seria o mais antigo, talvez ainda do século XVII, o Engenho de São Matias e o Engenho d’Água, o mais bem conservado. Embora em vários aspectos se possam relacionar com outras construções rurais, sobretudo da área do litoral do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, os engenhos da costa paulista têm a particularidade de conjugar num único edifício a casa de morada, a capela doméstica, a casa de engenho e os depósitos. Isto os torna sobretudo diferentes dos engenhos do Nordeste onde, na maioria dos casos, a casa‐grande tinha a função exclusiva de habitação e as instalações do engenho e a capela ocupavam edifícios separados.

A tipologia das construções rurais da costa também difere das do planalto. Enquanto ali os cheios predominavam sobre os vazios, aqui poder‐se‐ia dizer o contrário, sobretudo no conjunto dos engenhos na Baía de Guanabara, já do século XVIII, onde pontuam sobrados cercados por amplas varandas, que ocupam, por vezes, três das fachadas. O exemplo mais impressionante é, sem dúvida, o da Casa da Fazenda Colubandê, em São Gonçalo (RJ), onde um elegante avarandado de colunas toscanas circunda a casa e sustenta diretamente o telhado. O mesmo tipo de construção surge na Casa da Fazenda do Capão do Bispo, na Casa da Fazenda do Viegas, na Casa da Fazenda Engenho d’Água e na Casa da Fazenda Taquara, todas no Rio de Janeiro (RJ). Vários autores apontam como cabeça‐de‐série para esta tipologia a Casa e Capela da Fazenda São Bento, construção beneditina, em Duque de Caxias (RJ), onde a varanda com telhado em telha‐vã apoiado sobre colunas toscanas foi utilizada ainda no século XVII.

É interessante relacionar este conjunto com as duas casas rurais atribuídas ao brigadeiro José Fernandes Pinto Alpoim: a Casa do Bispo no Rio Comprido, no Rio de Janeiro (RJ) e a Fazenda Jurujuba, em Niterói (RJ). Ambas possuem arcadas no rés‐do‐chão. Na Casa do Bispo, uma escadaria central enriquece o edifício. Embora as funções não sejam comparáveis, os edifícios retomam elementos exteriores (os arcos, as escadas), que se vêem nas casas de câmara e cadeia, e outros interiores (pátio, vestíbulo) que se encontram em casas de residência do Brasil do século XVIII. Estes elementos, que se podem associar às tipologias urbanas, remetem para uma metodologia de composição arquitetónica de longa duração no Brasil, cuja autoria de um engenheiro militar só vem reforçar.

Os engenheiros foram presença contínua no Rio de Janeiro desde a sua fundação, em 1565. Nas palavras do padre Manuel da Nóbrega, que em 1564 missionava em São Paulo, devia povoar‐se o Rio de Janeiro com uma “cidade como a da Bahia”, para que com ela se guardassem as capitanias de São Vicente e do Espírito Santo, que segundo o jesuíta estavam “bem fracas”. Com efeito, o objetivo declarado da expedição enviada de Salvador era não só expulsar os franceses que tinham instalado a França Antártica na Baía de Guanabara, como criar ali uma cidade que sediasse a defesa da região. Mas no caso do Rio de Janeiro, o vaticínio de Nóbrega, de fazer‐se uma cidade comparável à da Bahia, viria a tornar‐se uma realidade de tal modo premente que ela acabou por substituir Salvador como capital do Brasil em 1763. Importa no entanto esclarecer que o que conduziu o Rio de Janeiro a uma inquestionável capitalidade no século XVIII é um processo que tem dois importantes marcos, ambos datados do final do século XVII. Por um lado, a descoberta de ouro no interior do continente, que viria a potencializar o papel do Rio como porto, não só para o escoamento das riquezas das Minas, mas também como porta de entrada de escravos, no que, de facto, iria acabar por ocupar o papel antes detido por Salvador no tráfico negreiro. Por outro lado, e não menos importante, temos a fundação da Colónia do Sacramento, em 1680, diante de Buenos Aires, concretizando a pretensão da coroa portuguesa de instalar uma povoação na foz do Rio da Prata.

Estas ocorrências, contemporâneas entre si, são, de certo modo, duas faces de um mesmo processo, cujos antecedentes remontam à dinâmica da expansão dentro do continente que se estabeleceu, desde o século XVI, a partir da capitania de São Vicente. Também neste aspecto é possível identificar um conjunto de ações que se desenvolveram ao longo da costa a par de outras iniciativas no planalto, que tiveram a vila de São Paulo como pivô. No litoral, os agentes da expansão territorial foram os donatários, os missionários e a coroa. No planalto, os agentes foram sobretudo os bandeirantes. A sua motivação inicial era o apresamento de índios, tendo efetuado verdadeiras razias às missões que os jesuítas espanhóis tinham instalado no sul do continente. A ampliação das linhas de ação dos bandeirantes para o oeste e para o centro redundou na descoberta de ouro e estabeleceu uma nova dinâmica de ocupação do interior do continente. Entretanto, a partir da costa alargou‐se a ocupação da própria costa, num processo que tem claramente duas fases, antes e depois da Colónia do Sacramento.

Num primeiro momento, os “vicentinos” foram responsáveis pela fundação de uma série de povoações. Para o norte, em direção ao Rio de Janeiro, fundaram Angra dos Reis (RJ) e Parati (RJ) elevadas a vila em 1608 e 1660, respectivamente. Para o sul, sempre buscando a conexão com o Rio da Prata, partiram de São Vicente os povoadores de São Francisco do Sul (SC), elevada a vila em 1660, e Laguna (SC), fundada no final do século XVII e elevada a vila em 1714. É interessante ver estas quatro vilas como exemplos de algumas das matrizes formais do urbanismo colonial no Brasil. Em Angra dos Reis e em São Francisco observa‐se um padrão comum a várias povoações do litoral, em que a vila se desenvolve ao longo da praia ou do porto. Num caso e noutro os tecidos não parecem muito regulares, mas há elementos que polarizam a estruturação e desenvolvimento do núcleo: em Angra, a Rua Direita, que era o eixo de ligação entre as principais edificações da cidade – a Matriz, os carmelitas, a Casa de Câmara e Cadeia; em São Francisco, a Praça onde se encontram a Matriz e a Câmara.

Em Parati e Laguna o tecido urbano é claramente mais regular, com ruas e travessas que se cruzam ortogonalmente. Não se trata de planos prévios, mas de crescimento tão gradual como nos exemplos anteriores. Para o desenvolvimento de Parati foi fundamental o papel que a vila desempenhou no dito “caminho velho”, ligando as Minas ao Rio de Janeiro. Não existem em Parati os grandes edifícios das ordens religiosas, o que terá de certo modo contribuído para a homogeneidade do tecido urbano. Mas as igrejas, ainda que singelas, têm alguma autonomia na sua integração urbana, criando situações de perspectiva, como na Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, ou de integração na paisagem, como a Capela de Nossa Senhora das Dores junto ao mar. Nesta capela é especialmente interessante o tratamento dado à fachada lateral, que se assemelha a um sobrado residencial.

Também ligada ao caminho velho das Minas, cabe citar o exemplo de Taubaté (SP). A vila foi criada em 1645, inserida no processo de expansão dos sertanistas paulistas em direção ao centro. Dali partiram os responsáveis pela transposição da Serra da Mantiqueira e Garganta do Embaú, alcançando os sertões das Gerais. Tal como em Parati, o seu traçado urbano é também bastante regular.

A ação dos missionários, sobretudo dos jesuítas, foi crucial para a consolidação da ocupação territorial no Sudeste. Os Colégios de Vitória, Rio de Janeiro, São Vicente e São Paulo eram as bases da missionação, a que se ligavam várias aldeias e engenhos. Ao Colégio de Vitória ligavam‐se, entre outras, as aldeias de Reretiba, hoje Anchieta (ES), Reis Magos, hoje Nova Almeida (Serra (ES)) e Guarapari (ES). Importa chamar a atenção para a tipologia das igrejas, que seguem o padrão jesuíta, com a fachada simples de porta única encimada por uma, duas ou três janelas, frontão reto em empena e apenas uma torre lateral, tendo ao seu lado a residência dos padres. A composição quase vernácula de alguns dos conjuntos jesuíticos faz José Pessoa dizer que recordam plasticamente construções alentejanas e algarvias. A Igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Anchieta, é um dos raros exemplares brasileiros de igrejas com três naves. Na Igreja dos Reis Magos, a porta em lioz tem elementos renascentistas. Nesta antiga aldeia é onde melhor se vê a implantação original do aldeamento: uma grande praça retangular, circundada pelas casas, com o conjunto da igreja e residência num dos topos. Depois da expulsão dos jesuítas, a aldeia foi transformada em vila, com o nome de Nova Almeida, tendo a igreja passado a funcionar como Matriz e a residência adaptada para Casa da Câmara e Cadeia.

Dos muitos engenhos e fazendas na dependência do Colégio do Rio de Janeiro restam alguns elementos, como a Casa e Capela do Engenho do Colégio dos padres, em Campos de Goitacazes (RJ), e a Igreja de São Francisco Xavier da Fazenda de São Francisco do Saco, em Niterói (RJ). Ainda em Niterói, na igreja do antigo aldeamento de São Lourenço dos Índios o destaque vai para o retábulo maneirista do altar‐mor. A Igreja de São Pedro da Aldeia (RJ) é um dos exemplares mais interessantes, com a torre, a igreja e residência fundidas na fachada contínua. Tem também três naves como a de Reretiba, de onde vieram os seus fundadores.

Aos colégios de São Paulo e São Vicente ligavam‐se, entre outras, as aldeias de Carapiciúba (SP), Embu (SP), São Miguel de Ururaí e Nossa Senhora dos Pinheiros, estas últimas de propriedade da coroa, mas administradas pelos jesuítas. Em Carapiciúba pode‐se reconhecer a instalação da aldeia em torno da grande praça retangular. Em Embu importa referir a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que é reconhecida como um dos mais importantes monumentos do século XVII em São Paulo. A extrema simplicidade do exterior, em que a própria torre é suprimida e transformada em sineira, não deixa adivinhar a riqueza do interior, com alguns elementos do século XVII e outros já do século XVIII. Na Igreja de São Miguel Paulista, na antiga aldeia de el‐Rei de São Miguel do Ururai, hoje dentro de São Paulo (SP), a típica fachada em empena recebe um alpendre. A Igreja de São João Batista, em Cananeia (SP), e a Igreja de Nossa Senhora da Escada, em Guararema (SP), também se associam à construção jesuíta.

Das outras ordens religiosas cabe referir os franciscanos, com o singular conjunto da Igreja e Convento de Nossa Senhora da Penha, em Vila Velha (ES), que se converteu em santuário de peregrinação; os conjuntos monumentais, embora arruinados, do Convento de São Bernardino de Sena e Capela dos Terceiros em Angra dos Reis (RJ), da Igreja e Convento de Santa Maria dos Anjos, Capela e Cemitério da Ordem Terceira, e Capela de Nossa Senhora da Guia, em Cabo Frio (RJ), e das ruínas da Igreja e Convento de São Boaventura de Macacu, em Itaboraí (RJ); e a Igreja e Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Itanhaem (SP) desenhada em 1774 pelo engenheiro militar José Custódio de Sá e Faria com o frontão triangular e galilé com três arcos plenos, segundo a tipologia da ordem. A Igreja e Convento de Nossa Senhora da Luz, hoje o Museu de Arte Sacra em São Paulo (SP), eram um convento franciscano feminino. Em obra do final do século XVIII, a igreja passou a ter planta octogonal. É uma das poucas igrejas com plantas poligonais construídas em taipa de pilão em São Paulo, assim como a Capela de Nossa Senhora do Pilar em Taubaté (SP), que tem planta hexagonal.

As galilés também aparecem nas igrejas beneditinas, tendo como exemplo magistral a Igreja do Mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro (RJ), iniciada em 1617, com projeto de Francisco Frias de Mesquita. É admirável a elegância compositiva da fachada. Aos três arcos da galilé, separados por pilastras, sobrepõem‐se janelas de verga reta, também separadas por pilastras, encimadas por um frontão triangular. O conjunto completa‐se com duas torres laterais com cobertura em pirâmide de alvenaria e quatro pilares esféricos de granito. Em contraste com a sobriedade chã da fachada do engenheiro‐mor, vislumbra‐se a opulência barroca do interior, que se manifesta na decoração pictórica e na talha dourada, que recobre literalmente toda a igreja da nave à sacristia. A fachada interior do mosteiro é da responsabilidade de outro engenheiro, o brigadeiro José Fernandes da Silva Alpoim, que reedificou o claustro em 1743, com arcadas nas galerias ao rés‐do‐chão e janelas de púlpito com balcões sacados no primeiro piso. Na Igreja e Convento de Santa Teresa, Alpoim também desenhou o claustro com arcadas no rés‐do‐chão. A igreja, com nave única e capela‐mor, conta com talha rococó dourada de grande unidade estilística.

O mesmo contraste entre simplicidade e riqueza é visível na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, onde convivem novamente a talha dourada e as pinturas em perspectiva ilusionista, numa decoração característica do período joanino. Na Igreja de Nossa Senhora do Monte do Carmo, antiga Catedral do Rio de Janeiro, a decoração interior é um esplêndido exemplo do rococó carioca. Do vastíssimo conjunto de arquitetura religiosa do Rio de Janeiro no século XVIII cabe destacar a Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, obra do tenente‐coronel José Cardoso Ramalho. A sua planta conjuga dois prismas octogonais alongados com uma torre central à frente. Trata‐se de um exemplar excepcional da arte dos engenheiros militares na arquitetura religiosa no Brasil. Para esta igreja, e outras, sobretudo da região de Minas, a história da arte cunhou o epíteto de “borrominescas”, posto que o dinamismo da planta manifesta‐se no exterior da igreja e é ainda completado por uma excepcional implantação na paisagem. Na Igreja de Nossa Senhora da Mãe dos Homens, atribuída ao brigadeiro Alpoim, e na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores voltamos a encontrar plantas poligonais no interior das igrejas, octogonal num caso e elíptica no outro, mas em ambas o exterior do edifício apresenta a forma rectangular, como nas igrejas referidas na costa nordeste (Nossa Senhora da Conceição da Praia, em Salvador e São Pedro dos Clérigos, no Recife).

O engenheiro José Custódio de Sá e Faria foi autor do risco da Igreja de Santa Cruz dos Militares. A planta segue uma tipologia recorrente em outras igrejas de irmandades no Rio de Janeiro setecentista, com uma só nave, larga, com altares adossados às paredes, ladeada por corredores que vão do frontispício à sacristia, situada esta a par da capela‐mor. O seu interesse reside sobretudo na fachada, que se inspira na das igrejas da transição do tardo‐maneirismo para o barroco romano, em especial na Santa Susana de Carlo Maderno, adaptando‐a à planta da igreja com o corpo central correspondente à nave, mais elevado e coroado por frontão triangular, e os corpos laterais mais baixos, correspondentes aos corredores laterais, unidos ao central por volutas. A composição, corretíssima, respeita a sobreposição das ordens arquitectónicas, denunciando a erudição do autor, que foi um dos militares mais atuantes na região sul. É‐lhe atribuído o risco da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão (RS).

Em meio à conjuntura tensa dos anos que se seguiram à anulação do Tratado de Madrid e à Guerra dos Sete Anos, Sá e Faria foi nomeado para o governo da capitania do Rio Grande de São Pedro, em 1764. Um dos investimentos fundamentais do seu governo foi a implementação da política, já antes iniciada, de criar novos povoados com colonos açorianos que servissem à defesa da região. As primeiras iniciativas foram levadas a cabo em Santa Catarina pelo brigadeiro José da Silva Paes, que foi nomeado governador da capitania em 1738. Uma carta régia, datada de 9 de agosto de 1747, determinava os procedimentos a tomar para a instalação dos colonos. Trata‐se de um documento muito importante, pois definia medidas específicas para o dimensionamento das praças e ruas dos novos núcleos a serem fundados, assim como estabelecia o tamanho dos lotes urbanos e rurais a serem distribuídos pelos povoadores. A presença açoriana é especialmente significativa na Ilha de Santa Catarina. A Freguesia de Santo António de Lisboa e a Vila de Ribeirão da Ilha são exemplos do processo de instalação dos colonos. Na capitania do Rio Grande de São Pedro, José Custódio de Sá e Faria foi o responsável direto pelo projeto e instalação da vila de Taquari (RS), que tem a particularidade de ter duas praças retangulares simétricas, o que a associa à vila de Macapá, criada no norte, alguns anos antes, também por um engenheiro militar.

Esta observação leva‐nos para a conjuntura da demarcação de limites, que ocupa toda a segunda metade do século XVIII. No mesmo contexto de consolidação do povoamento da região cabe referir as fundações urbanas realizadas na capitania de São Paulo por iniciativa do morgado de Mateus. Entre vários exemplos, pode citar‐se São Luís do Paraitinga (SP), fundada relativamente próxima de Taubaté para controlar a passagem ilegal para as Minas. Uma vasta praça retangular estrutura o desenho urbano, no que é uma característica comum de outras fundações do período pombalino. Também da iniciativa do morgado de Mateus, mas já concluída sob o governo de Bernardo José de Lorena, cerca de 1790, foi a Calçada do Lorena. Trata‐se da estrada construída na Serra do Mar, vencendo o trecho mais árduo da ligação de São Paulo ao porto de Santos, de que restam alguns trechos visitáveis. Beatriz Bueno chama a atenção para a qualidade técnica da obra, cujo traçado foi desenhado de forma a vencer o desnível da serra sem cruzar um único curso d’água, dispensando o uso de pontes. Outra obra significativa da engenharia militar setecentista no Brasil é o Aqueduto da Carioca, no Rio de Janeiro.

Dissemos que no processo de ocupação da costa houve um antes e um depois da fundação da Colónia do Sacramento, em 1680. Importa dizer também que há um antes e um depois da negociação da Colónia do Sacramento, que redundou no Tratado de Madrid, em 1750, e no processo de demarcações de limites que se lhe seguiu. Mas, para além disso, há que ter em conta a singularidade da própria Colónia do Sacramento no conjunto da arquitetura militar construída pelos portugueses na América.

A fundação da Colónia foi um marco inquestionável do ponto de vista político. A sua construção, ostensivamente diante de Buenos Aires, foi sempre contestada pela coroa espanhola, que manteve a praça sob ataques constantes e em várias ocasiões a tomou pelas armas. Portugal, quase sempre, voltava a recuperá‐la por via diplomática, assim como foi por via diplomática que a “cedeu” nas negociações do Tratado de Madrid em troca do sertão, ou seja, do vasto território do interior do continente. Pode dizer‐se que o que singulariza a Colónia do Sacramento é esta condição de “fronteira viva” em território avançado, o que faz com que, ao contrário do que referimos para as fortificações da costa nordeste, onde as fortalezas defendiam as cidades sem as circunscrever, aqui a cidade era a própria fortificação. Com efeito, a Colónia não era, do ponto de vista jurídico, uma cidade: não tinha Câmara Municipal, o seu governador sempre foi um militar. Não cabe aqui discutir esta questão, importa apenas referir que a existência deste posto avançado modificou o quadro da defesa de toda a região sul.

Até ao século XVII, para além das fortificações da Baía de Guanabara, guardando o Rio de Janeiro, a defesa da costa fez‐se com pequenos fortes, como o Forte de São João da Bertioga ou de São Tiago em Santos (SP), ou o Forte de São Mateus em Cabo Frio (RJ), atribuído a Francisco Frias de Mesquita. Na primeira metade do século XVIII há um investimento considerável na fortificação da Ilha de Santa Catarina (SC), de modo a coadjuvar a Colónia do Sacramento e garantir a posse de todo o território sul. São desta época as fortalezas de Santa Cruz de Anhatomirim, São José da Ponta Grossa, e Santo António de Ratones, obras do brigadeiro José da Silva Paes. No Rio de Janeiro, Silva Paes desenhou a Fortaleza de São José, de que hoje restam o portão em granito e o frontispício da capela em pedra de lioz. Da segunda metade do século XVIII são a Fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres, ou da Ilha do Mel, atribuída a José Custódio de Sá e Faria, e o Forte de São Filipe, em Guarujá (SP). No Rio de Janeiro, a Fortaleza da Conceição é o exemplar mais conservado deste período.

O Rio da segunda metade do século XVIII era a capital do vice‐reinado do Brasil e, nos primeiros anos do século XIX, a sede da coroa portuguesa. Talvez não se possa falar de monumentalidade para referir as transformações que a presença da corte operou na cidade, mas é inegável o seu crescimento e sobretudo o investimento realizado por D. João VI em determinados equipamentos urbanos. A antiga Residência dos Governadores, que foi inaugurada em 1743, com risco do engenheiro José Fernandes Alpoim, foi transformada em Paço Imperial, tendo sido objeto de reformas que a dotaram de um torreão na fachada para o mar. Outras edificações que serviram de moradia para a família real também foram objeto de intervenções (Quinta da Boa Vista, Solar Del‐Rei em Paquetá e Casa de Banhos de D. João VI no Cajú). Entre as obras mais significativas da iniciativa do próprio D. João VI estão o Jardim Botânico e o Museu Real. Da autoria de Grandjean de Montigny, o arquiteto francês integrante da comissão artística recebida por D. João VI, cabe referir o seu primeiro projeto no Brasil, o edifício da Praça do Comércio do Rio de Janeiro e a sua residência, o Solar Grandjean de Montigny. Uma obra que, de certo modo, representa a presença da corte portuguesa no Rio, fez‐se já depois da sua ausência. Trata‐se do Real Gabinete Português de Leitura que, no seu ecletismo neo‐manuelino e neo‐gótico, com o Infante D. Henrique, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e Luís de Camões na fachada, invoca o elo entre Portugal e o Brasil.

Renata Malcher de Araujo

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