Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.
A selva e o rio são as duas grandes entidades geográficas da Amazónia. Ao longo de praticamente todo o século XVI, o vislumbre do território deu‐se pela incorporação mitológica da região, que foi objeto de expressivas representações simbólicas, desde as míticas mulheres guerreiras que deram nome ao rio até aos sonhados eldorados que ali se esperava encontrar. Embora não existisse uma correspondência direta e continuada em termos de ocupação territorial, é importante reter que o grande Rio Amazonas foi desde logo “apropriado” pela cartografia portuguesa, que o integrou como parte da parte que lhes cabia na partilha do mundo. E que o viu, também desde então, como uma estrada de penetração no continente, imaginando a hipótese de por ali chegar ao ouro dos Andes.
A ocupação efetiva da região começou apenas no início do século XVII, com a fundação dos dois principais núcleos urbanos: São Luís e Belém (1615‐1616). A fundação de São Luís implicou a retirada dos franceses do Maranhão e a consolidação da defesa da costa atlântica. No entanto, ainda na primeira metade do século XVII a cidade viria a ser novamente ocupada pelos holandeses. Belém, instalada na foz do Amazonas, foi claramente fundada como foco de penetração no rio. Os dois principais núcleos urbanos vão manter, ao longo de todo o processo de colonização, uma relação de polaridade de certo modo antagónica. Ambos reivindicavam a centralidade regional mas, na verdade, não só a região se encontrava isolada do resto do Brasil, como a própria ligação entre as duas cidades não era fácil.
Com efeito, as dificuldades de comunicação marítima com Salvador e a noção das especificidades da região deram origem à criação, em 1621, de um território administrativo específico, o Estado do Maranhão e Grão‐Pará, cuja gestão dependia diretamente de metrópole. Depois da Restauração, em 1652, D. João IV pôs fim ao estado, atendendo a reivindicação dos capitães‐mores do Pará, que não se queriam submeter à jurisdição dos governadores em São Luís e reivindicavam que a grande distância da capital dificultava a gestão da capitania do Pará. Mas a medida não teve os efeitos desejados e D. João IV voltou a instituir o estado, em 1654, nos mesmos moldes de 1621. Este enquadramento administrativo durou até à segunda metade do século XVIII. Em 1751, com a ida de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, como governador e comissário das demarcações, a capitania do Grão‐Pará adquiriu a maior autonomia que desde há muito reivindicava. Belém passou então a ser a sede do estado, que passou a chamar‐se do Grão‐Pará e Maranhão. Em 1772 extinguiu‐se o governo separado e a região foi integrada no Estado do Brasil.
Esta situação administrativa diferenciada corresponde também a um quadro específico de ocupação que se reflete na herança patrimonial. Durante o século XVII e até à primeira metade do século XVIII fundaram‐se poucos núcleos urbanos na região, e todos se fizeram relativamente próximos de São Luís e Belém. Entre estes contam‐se as vilas de Alcântara (MA), Icatu (MA), Vigia (PA) e Cametá (PA). Alcântara é a que guarda ainda hoje mais elementos do período colonial, tendo um dos raros pelourinhos do Brasil colonial expostos na praça pública, diante da Câmara.
No interior da Amazónia, e verdadeiramente dentro da selva, o processo colonizador fazia‐se representar pelos missionários. Jesuítas, franciscanos, carmelitas e mercedários foram distribuídos ao longo do rio e dos seus afluentes, em áreas separadas e pré‐determinadas de atuação, funcionando como uma frente avançada da colonização. As grandes distâncias e o conflito latente entre todos os grupos sociais, colonos, missionários e índios, perpassam todo o primeiro século da ocupação e definem um quadro regional que se mantém profundamente marcado pela insegurança e pela violência. Quadro este que é agravado ainda não só pela fragilidade da economia, que se baseava quase unicamente na extração das ditas “drogas do sertão”, como também pelas dificuldades em lidar com algumas das características regionais, sobretudo os factores de ordem climática e a sua relação com os problemas de saúde. A pobreza era generalizada e as epidemias constantes, dizimando sazonalmente a população. Neste sentido, mantinha‐se de certo modo o estigma das dificuldades impostas pela “selva”, que permanecia, mesmo no imaginário do colonizador, como uma espécie de fronteira interna à sua própria presença.
As fortificações foram, naturalmente, os primeiros elementos a serem construídos. Em São Luís (MA), como bem diz Rafael Moreira, hoje “nada se vê daquilo que foi o berço da cidade”. Pouco resta do seu sistema de fortificação inicial. Camufladas por obras ou usos incorretos, há ainda a Fortaleza de Santo António da Barra, de forma circular como o Forte do Bugio em Lisboa, e a Fortaleza de São Francisco. O Palácio do Governo foi erguido sobre a área do primitivo Forte de São Luís, que tinha sido tomado aos franceses. Ironicamente, no regimento deixado por Alexandre de Moura a Jerónimo de Albuquerque, determinava‐se que o capitão‐mor do Maranhão não vivesse “em nenhuma maneira dentro dos fortes, senão havendo ocasião forçosa de inimigos em que lhes pareça é necessária a sua assistência”. Este regimento é um documento único na história do urbanismo colonial português, pois refere com clareza a “traça” do arruamento da cidade, feita pelo engenheiro‐mor do reino, Francisco Frias de Mesquita, que o capitão‐mor deveria seguir. A cidade ficou certamente “bem arruada e direita”, como determinava o documento.
Em Belém (PA), o Forte do Presépio foi o primeiro marco da ocupação e seria literalmente o ponto nodal de desenvolvimento do núcleo urbano. Recentemente restaurado, recuperou de maneira integrada os seus elementos remanescentes mais significativos. A defesa da cidade completava‐se com a Fortaleza da Barra, outra fortificação circular construída no rio, que foi demolida no século XX, e um fortim (baluarte) de São Pedro Nolasco diante do Convento das Mercês, cujos vestígios arqueológicos também foram recentemente recuperados.
Das fortalezas de defesa interna dos rios da Amazónia cabe referir o Forte de Santo António do Gurupá, Gurupá (PA). Construído no século XVII sobre os escombros de uma fortificação holandesa, foi modificado no século XVIII e serviu como posto de registo das embarcações que navegavam no rio. O mesmo se passou com o Forte de Óbidos, Óbidos (PA), que foi edificado no trecho mais profundo e menos largo do Rio Amazonas. Mas o mais imponente exemplar da arquitetura militar na Amazónia é, sem dúvida, a Fortaleza de São José de Macapá, Macapá (AP). Construída entre 1764 e 1782, na foz do Amazonas, sob projeto do engenheiro italiano Henrique António Galuzzi, é a maior fortificação do século XVIII no Brasil, que deve ser vista a par do Forte do Príncipe da Beira, Costa Marques (RO). Ambos cumpriram o desígnio fundamental de simbolizar a posse política do território, em plena conjuntura das demarcações de limites, ainda que não tenham sido utilizados do ponto de vista bélico. Ambos foram construídos, literalmente, como monumentos.
A par da fortaleza, também a vila de São José de Macapá (AP) deveria garantir a defesa da entrada do rio. A sua criação foi uma das prioridades do governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Para ali enviou o engenheiro Tomás Rodrigues da Costa, responsável pelo projeto da vila, que pode ser lida como um dos principais elementos da reforma urbana levada a cabo pelo irmão de Pombal na Amazónia.
A conjuntura das demarcações é crucial para o entendimento da ação de Mendonça Furtado e dos seus sucessores no governo da Amazónia. A própria mudança da capital e da denominação do estado visava uma gestão mais eficaz e pretendia garantir o controle do vasto território. A criação, em 1755, da capitania do Rio Negro insere‐se no mesmo contexto. Mas o projeto político e ideológico de transformação da região é mais amplo e uma das suas principais bases foi um importante conjunto de leis, sobretudo a lei que determinava a liberdade total dos nativos, promulgada em 1755, e o Diretório que se deve observar nas povoações de Índios do Pará e Maranhão, que foi tornado público em 1757 e confirmado pelo rei em 1758.
A aplicação desta lei redundou na criação das ditas vilas pombalinas da Amazónia, que se fizeram convertendo e, em vários casos, redesenhando os antigos aldeamentos missionários, que foram novamente batizados com nomes de importantes vilas do reino, numa duplicação toponímica que tinha como intenção óbvia reafirmar a pertença destas vilas a um espaço que se queria inquestionavelmente português. Entre as determinações expressas na lei constava que nas novas vilas então criadas, índios e brancos não só deveriam viver em pacífica, cordial e civilizada convivência, como se recomendava expressamente que esta convivência redundasse numa progressiva miscigenação, incentivando‐se os casamentos mistos. A mesma legislação foi depois aplicada para todo o Brasil, em 1759, obrigando à transformação dos aldeamentos missionários em vilas.
Antes ainda da legislação do diretório, Mendonça Furtado empregou os técnicos da comissão demarcadora nos trabalhos de urbanização. A intervenção na antiga vila do Caeté, rebatizada Bragança (PA), é um antecedente importante. Um dos objetivos da reformulação da vila era, tal como em Macapá, a instalação de casais açorianos que tinham sido enviados como povoadores para a Amazónia. O outro objetivo era a abertura e a sustentabilidade da estrada por terra para o Maranhão, que os engenheiros desenharam juntamente com a reformulação da vila. O mesmo se passou em Ourém (PA), criada noutro ponto do caminho. Nos dois casos, a intenção era fazer conviver nas novas povoações então (re)fundadas os povoadores açorianos e os indígenas que ali estavam instalados em aldeamentos missionários.
Entre as intervenções posteriores à legislação cabe citar a vila de Óbidos (PA), que resultou da junção de uma pequena povoação ao lado do Forte de Pauxis com a “aldeinha” dos frades franciscanos da Piedade. O bispo D. Frei Caetano Brandão descreveu a vila no final do século XVIII, afirmando que tinha “planta assaz bela, casas arruadas, e posto que cobertas de palha, com seu alinho: uma formosa praça no meio”. A despeito da sua simplicidade, o centro urbano de Óbidos é um dos mais interessantes do interior da Amazónia, por ter mantido a volumetria das casas térreas e o carácter de coesão do conjunto.
No Maranhão, R. Moreira indica que Viana, Monção, Guimarães, Cantanhede e Penalva eram todas aldeias ou fazendas dos jesuítas na baixada maranhense que foram elevadas a vilas. Caxias (MA) foi o novo nome dado aos aldeamentos jesuítas de Tresidela e Aldeias Altas, unidos em vila em 1766. Tinha uma localização geográfica importante no último ponto navegável do Rio Itapecuru, funcionando ainda como pivô dos caminhos que ligavam a São Luís, às fazendas do Piauí e ao vale de São Francisco e interior da Bahia. Foi centro importante da cultura do algodão no século XIX.
Os jesuítas foram os responsáveis pelas construções mais monumentais da arquitetura religiosa do norte do Brasil. O exemplo mais imponente é o da Igreja e Antigo Colégio de Santo Alexandre, em Belém (PA). De grandes dimensões, com planta seguindo o modelo do Gesú de Roma, a igreja, acompanhada do edifício do colégio, é um marco inquestionável da força da presença da ordem na região. A fachada, de três portas, evidencia‐se pelo trabalho muito interessante de relevo em massa, onde a inspiração maneirista associada à escala agigantada dos elementos dá à igreja um especial sabor mestiço, que a aproxima das fachadas‐retábulo dos jesuítas na América Hispânica. No interior destaca‐se a obra em talha dos retábulos, executada por artífices locais e, sobretudo, os dois púlpitos, atribuídos ao padre João Xavier Traer, austríaco que residiu em Belém até 1737.
A excelência da talha jesuíta deu origem à dita “escola maranhense de imaginária” cuja principal oficina‐escola se localizava na Ilha de São Luís, na aldeia de Anidimbá, que foi elevada a vila em 1761, com o nome de Paço do Lumiar (MA). A oficina era muitas vezes visitada pelo padre austríaco de Belém.
A antiga Igreja de Nossa Senhora da Luz, dos jesuítas, é hoje a Catedral de Nossa Senhora da Vitória, em São Luís. O projeto, de um dos mais importantes missionários do norte, o padre Bettendorf, autor da Crónica da Companhia de Jesus no Maranhão, foi feito “segundo as prescrições de Vitrúvio, mestre dos arquitetos, e à imitação de Nossa Senhora do Loreto, de Lisboa”. Modificações introduzidas no século XX mudaram o aspecto do edifício, especialmente a fachada. No interior, preserva‐se o retábulo do altar‐mor em talha dourada, o primeiro realizado em “estilo nacional” no Brasil.
Na vila da Vigia (PA), a Igreja da Madre de Deus é um dos edifícios mais interessantes da Companhia no Brasil, sobretudo pelas suas imponentes varandas laterais superiores, ornadas por doze grossas colunas toscanas, que sustentam a cobertura em madeira do templo. Bazin diz que é caso único no Brasil, embora se possa associar estas varandas a construções jesuíticas na Índia. Poderão também ser relacionadas, apesar dos usos diferentes, com as varandas que surgem nas casas de fazenda do Rio de Janeiro no século XVIII, como a Casa da Fazenda Colubandê, em São Gonçalo (RJ), onde se utilizaram, do mesmo modo, grossas colunas toscanas sustentando diretamente o telhado, provavelmente inspiradas na Casa e Capela da Fazenda São Bento, construção beneditina, em Duque de Caxias (RJ). Faltam estudos sobre estas conexões mais amplas do vocabulário formal utilizado na colónia, mas é de todos os modos evidente que determinadas soluções, em especial as que implicavam adequação às condições climáticas, terão sido ensaiadas em várias circunstâncias, ou rapidamente assimiladas e transmitidas pelos agentes.
Das outras ordens religiosas, os edifícios mais significativos são, dos carmelitas: a Igreja do Carmo, em Alcântara (MA), que é a mais rica e bem conservada da cidade; a Igreja do Carmo, em São Luís (MA), que conserva traços bem fortes de ligação com o traçado seiscentista; e a Igreja do Carmo e Capela da Ordem Terceira, em Belém (PA), que é exemplo muito significativo das vicissitudes das sucessivas reconstruções das igrejas. A primeira edificação, em taipa, estava em ruínas em 1696. Um novo edifício foi construído e, em 1721, noticiava‐se em Lisboa as festas de transladação do Santíssimo para a igreja nova. A capela‐mor data desta obra; os seus retábulos foram executados em 1720. Para a fachada, encomendou‐se um projeto que foi completamente executado em pedra em Lisboa. O assentamento da fachada causou danos à nave, que teve de ser demolida e refeita segundo novo projeto que foi contratado a António José Landi, o arquiteto italiano integrante da comissão demarcadora de limites, a quem cabe creditar várias outras intervenções em Belém.
Na Capela da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, atribui‐se a Landi o retábulo da capela‐mor. A Igreja e Convento de Santo António, em Belém (PA), foram muito transformados; restam, no entanto, no interior da igreja silhares de azulejos do século XVIII. Do Convento de Santo António, em São Luís (MA), o mais interessante é a capela da Irmandade do Bom Jesus dos Navegantes, que terá sido a primitiva igreja conventual de 1625, enriquecida depois pela irmandade, que era a responsável pela conservação das sete capelas da procissão dos Passos, na Semana Santa (de que apenas quatro se conservam).
Os frades das mercês tinham conventos em São Luís e Belém. Próximo do convento de São Luís existe a Igreja de São José do Desterro, que tem uma muito pouco comum planta pentagonal, sobre a qual não há muitas informações. Não há consenso sobre a autoria da Igreja e Convento das Mercês, em Belém (PA). Trata‐se de um singular edifício de fachada convexa, com duas torres recuadas que acentuam o seu dinamismo e potencializam a sua leitura urbana. É seguramente um dos edifícios mais emblemáticos de Belém e a sua finalização corresponde à época em que a cidade vivenciava, com monumentalidade barroca, a condição de capital do estado do Grão‐Pará e Maranhão.
Pode inserir‐se neste contexto a conclusão das obras da Catedral de Nossa Senhora da Graça, um edifício de dimensões excepcionais, com uma larga fachada com sete janelas no segundo piso, cujo coroamento foi obra de António José Landi. A Igreja de Santana e a Capela de São João Batista são ambas projetos do arquiteto bolonhês. Na Igreja de Santana utilizou uma invulgar, para o Brasil, planta em cruz grega com uma cúpula cobrindo o transepto. Na Capela de São João Batista, a planta é um octógono irregular inscrito num quadrado. Isabel Mendonça chama a atenção para a pintura de perspectiva da parede fundeira da capela‐mor, de influência bibienesca (o estilo cenográfico característico dos irmãos Bibiena).
Landi foi o autor do Palácio dos Governadores, o maior edifício com estas funções construído no Brasil colonial. Trata‐se de um projeto de cunho nitidamente monumentalizante, edificado numa vasta praça diante do porto, que era, e ainda é, o centro vital da cidade e o seu elo de ligação com a região. Também terá desenhado sobrados para os ricos proprietários de Belém, de que se conhecem alguns desenhos. Restam, no entanto, muito poucos elementos de arquitetura civil do século XVIII na cidade. A Casa das Onze Janelas é o resultado da adaptação feita por Landi num sobrado localizado na Praça da Sé, para ali instalar o hospital real.
Da arquitetura civil urbana de São Luís (MA), bem diz R. Moreira que o “conjunto é o monumento”. O mesmo se pode dizer da Baixa pombalina, em Lisboa. Os sobrados do centro histórico de São Luís são, com efeito, um documento concreto da vivência urbana do Brasil colonial e da sua relação especular com a capital do reino. Mais interessante ainda é que os azulejos que se utilizaram para revestir as fachadas dos sobrados de São Luís (e Belém) tenham vindo de Portugal e a mesma solução, aparentemente tão tropical, tenha sido depois utilizada nas casas em Lisboa e no Porto, mantendo, século XIX adentro, um inquestionável “ar de família”.
Renata Malcher de Araujo