Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.
É famosa a frase de Frei Vicente do Salvador, em que o autor da História do Brasil afirma que os portugueses tinham vivido até então “arranhando as costas como caranguejos”. Mais adiante, volta ao assunto, esclarecendo o móbil que deveria acelerar a penetração até então adiada, “pois, sendo contígua esta terra com a do Peru, que a não divide mais que uma linha imaginária indivisível, tendo lá os castelhanos descobertas tantas e tão ricas minas, cá nem uma passada dão por isso, e quando vão ao sertão é a buscar índios forros, trazendo‐os à força e com enganos para se servirem deles e os venderem com muito encargo de suas consciências”. Estava‐se nas primeiras décadas de seiscentos. No final do século, o apelo de Frei Vicente tinha sido ouvido e no sertão, onde se tinha ido buscar índios, encontraram‐se as tão sonhadas minas. Tal processo espelha‐se na literal mutação toponímica: a região que era conhecida como o “sertão dos cataguazes” passou a ser identificada como as “Minas Gerais”.
O sertão é a mais ubíqua das entidades espaciais da colonização. No Brasil, a palavra servia para identificar todas as áreas ainda não ocupadas. Havia os sertões da Bahia, os sertões de Pernambuco, etc... O sertão aparece assim como uma noção de pré‐território, é a região ainda não devidamente desbravada mas já reconhecida como tal. Na bela expressão de Cláudia Damasceno Fonseca, o sertão era “um perpétuo vir a ser”, uma zona de fronteira móvel que o avanço da conquista convertia em território.
No decorrer do século XVIII este processo vai, com efeito, de encontro ao limite, desenhando finalmente a dita “linha imaginária indivisível” que deveria separar as terras dos reis de Portugal e de Espanha na América. A materialização da fronteira fez‐se balizada pelos rios onde, repetindo o processo utilizado na costa, se voltariam a estabelecer povoações para garantir a defesa. Povoações e, naturalmente, também fortificações.
Preservaram‐se dois exemplares da arquitetura militar da fronteira interna do Brasil: no norte, no Rio Guaporé, afluente da bacia do Amazonas, o Real Forte do Príncipe da Beira, Costa Marques (RO) e no sul, no Rio Paraguai, o Forte de Nova Coimbra, Corumbá (MS). Ambos começaram a ser construídos na década de 1770, na conjuntura que antecedeu o Tratado de Santo Ildefonso. Têm escalas e tipos de implantação diferentes. O Forte de Nova Coimbra começou por ser um pequeno reduto, feito para defender uma posição no vasto Rio Paraguai. Foi reformulado no final do século XVIII por Ricardo Franco de Almeida Serra, convertendo‐se numa fortificação irregular, adaptada ao muito acidentado terreno do morro onde se localizava. O resultado final foi um forte relativamente pequeno, mas com um belíssimo sentido de integração na paisagem. A Fortaleza do Príncipe da Beira nasceu da colaboração entre as especulações de Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, o governador, e a ação prática e teórica de Domingos Sambucetti, o engenheiro. Trata‐se de uma fortificação regular com quatro baluartes que se assemelha, na forma e dimensões, à Fortaleza de São José de Macapá. Nas muralhas, a pedra, corretamente talhada, mostra‐se na sua cor escura natural, dotando o conjunto remanescente da fortaleza de uma imponência ímpar.
Mas, para além dos fortes, eram as vilas fundadas na fronteira que, com os seus habitantes, deveriam ser as “muralhas dos sertões”. Todos os governadores da capitania do Mato Grosso se empenharam na construção destas muralhas virtuais. D. António Rolim de Moura fundou, em 1752, a capital, Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), seguindo escrupulosamente as determinações régias, que mandavam fazer a margem do Rio Guaporé com ruas retas e “formosas”. Mas foi Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres o responsável pelo maior número de fundações urbanas, entre as quais se contam, no Rio Paraguai, a Vila Maria do Paraguai e Albuquerque, hoje respectivamente Cáceres (MT) e Corumbá (MS), que são centros urbanos importantes na região, e Casal Vasco (MT), no Rio Barbados, nas proximidades de Vila Bela, de que só restam as ruínas. Na praça que deu origem à vila de Cáceres preserva‐se o Marco do Jauru, um dos obeliscos usados nas demarcações de limites.
Mas enquanto na fronteira do Mato Grosso as vilas foram criações ex nihilo, estabelecidas pela iniciativa direta dos governadores, que para tal tiveram de providenciar, em determinadas circunstâncias, inclusive o aporte dos povoadores, nas Minas, na maioria dos casos, o que se deu foi o contrário. Foram os vários nódulos espontâneos de povoamento, os arraiais de mineiros, os locais de pouso de mercadores, as paragens ao bordo de caminhos, que se converteram em aglomerações populosas. No léxico de Minas, arraial virou sinónimo de povoação.
Em princípio, arraial significava na colónia o mesmo que ainda hoje significa em Portugal, ou seja, um acampamento (militar de início), ou ainda o local das festas ou quermesses. No fundo, a base de compreensão do termo seria a da condição de efemeridade da instalação. O que é interessante é que em Minas este termo passou a permanente. Até obterem o título de vila, a maioria das povoações ali fundadas continuaram a ser identificadas como arraiais, mesmo nos casos em que a sua função inicial não foi um arraial de mineiros. E foi nestes arraiais, fundados, via de regra, pelos desbravadores paulistas, mas logo acolhendo as levas sucessivas que vinham da Bahia, de toda a costa e diretamente do reino, que nasceu a cultura, profundamente urbana, das Minas. Uma urbanidade específica que convivia diretamente com as lavras, sobre as quais se estruturavam as ruas, adaptando‐se ao terreno acidentado.
O processo de formação urbana de Ouro Preto (MG) pode ser tomado como exemplo. Nos anos finais do século XVII, o sucesso das diversas bandeiras que devassaram a região atraiu muita gente ao local. Os grupos distribuíam‐se em arraiais sucessivos, nos vales da Serra do Ouro Preto, seguindo os ribeiros onde despontava o ouro, que num relato coevo aparece como “uma continuada rua”. Nas imediações das principais jazidas, e em posições de destaque na serra, foram erguidas diversas capelas. Na primeira década do século XVIII, as capelas dos dois principais arraiais foram promovidas pelo bispo do Rio de Janeiro à categoria de igrejas matrizes: Nossa Senhora do Pilar, no arraial do Ouro Preto, e Nossa Senhora da Conceição, no arraial de António Dias. Em 1711, as duas freguesias foram reunidas numa única vila, batizada então “Vila Rica”. Inicialmente a povoação se compunha de diversos núcleos esparsos. Pouco a pouco, estes interstícios foram sendo ocupados, e a aglomeração tomou uma forma linear e contínua, seguindo um eixo longitudinal a que se foram depois acrescentando outros transversais, sempre vencendo a orografia. No próprio termo de ereção atentava‐se para o facto de não ser “o sítio muito acomodado” mas, “atendendo às riquezas que prometiam as minas” todos convieram que se fundasse ali a vila.
O processo foi similar em várias outras ocasiões. Em determinadas circunstâncias as autoridades pretenderam inclusive transferir a povoação para terrenos menos acidentados, como foi tentado em São João del‐Rei (MG). O governador fez instalar o pelourinho numa nova praça, que deveria recentrar a povoação, mas tal não surtiu efeito, pelo menos não de imediato. De facto, na maioria dos casos, a regulação urbanística das vilas foi processual. Foi sendo executada sobretudo pelas próprias câmaras municipais, como é patente em Sabará (MG), Tiradentes (MG) e São João de Rei (MG). Mesmo nos casos em que a intervenção da coroa se fez particularmente presente, a ação das câmaras foi fundamental. Tome‐se como exemplo Mariana (MG). O seu traçado regular é tradicionalmente atribuído ao engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim, que teria desenhado o plano da vila na altura em que esta foi elevada à condição de cidade, para sediar o bispado das Minas. A realidade revela‐se no entanto mais complexa, pois ao eventual plano do engenheiro devem juntar‐se não só as condicionantes do arraial já existente, como a ação de vários outros agentes que, ao longo do tempo, o foram executando e adaptando. Também se cogita que Alpoim tenha desenhado o traçado urbano de Barbacena (MG), onde interveio no desenho do frontispício da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade. O engenheiro foi o responsável pelo projeto do Palácio dos Governadores, em Ouro Preto, tendo idealizado um edifício em forma de fortaleza, cujos baluartes, com guaritas nos seus quatro ângulos, deveriam representar inequivocamente o poder da coroa.
Importa referir que um dos aspectos mais relevantes da ação da coroa na capitania das Minas foi precisamente a gestão da estrutura administrativa do território, essencial para garantir não só a captação das riquezas como a própria estabilidade numa área naturalmente propensa a conflitos. A região experimentou um rápido crescimento demográfico e viu surgir vários núcleos de povoamento espontâneos. Como chama a atenção Cláudia Damasceno Fonseca, foi com relativa parcimónia que a coroa decidiu quais destes núcleos deveriam ser elevados a vilas. São vários os casos aqui referidos de povoações que reivindicavam o título de vila e que não o tiveram senão já no século XIX. Entre outros, vejam‐se os exemplos de Catas Altas (MG), Conceição do Mato Dentro (MG), ou Santa Bárbara (MG).
Mas se nem todos puderam ter câmara, pode dizer‐se que em cada um dos aglomerados populacionais das Minas existia pelo menos uma igreja. A arquitetura religiosa mineira é um dos conjuntos mais significativos e coesos do património herdado do período colonial no Brasil. Há aspectos importantes a ter em conta para esta grande unidade. Em primeiro lugar, o facto de não existirem nas Minas os edifícios das ordens religiosas potencializou a criação de tipologias específicas tanto para as igrejas das confrarias, como para as matrizes. A cronologia das construções, concentrada no século XVIII, é também responsável pela identidade e coerência estilística do conjunto. A densidade demográfica contribuiu para a demanda e a riqueza da mineração sustentou as várias encomendas, mas o que sem dúvida singulariza a arte e a arquitetura religiosa das Minas é a qualidade dos artistas e artesãos que executaram as obras, entre os quais avulta a figura maior de António Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
Muito se tem escrito sobre a vida e obra deste excepcional e multifacetado artista. Não é aqui o lugar para apresentar os temas que a bibliografia tem discutido a respeito das bases do seu processo criativo ou do grau de mestiçagem que a sua obra comporta. Cabe apenas lembrar que, por vários motivos, não é correto isolar a figura do Aleijadinho. A sua obra insere‐se num conjunto mais vasto, onde se podem discernir várias linhas de confluência, que conectam elementos vindos diretamente da metrópole com outros que representam linhas de continuidade dentro da própria colónia e outros ainda que parecem trazidos de longe para dar um toque exótico, como é o caso das “chinesices” que se vêem no cadeiral da Sé de Mariana, ou nas pinturas da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição e da Igreja de Nossa Senhora do Ó em Sabará (MG), que terão sido provavelmente executadas por um artista natural da Índia! Uma decoração em estilo oriental semelhante aparece na Capela de Santana, em Barão de Cocais (MG).
Num estudo hoje clássico sobre o barroco mineiro, Lourival Gomes Machado afirmava: “é tempo de dar menos atenção aos elementos transpostos, como tais e apenas como tais, porquanto nesta condição por força parecerão expressões antes correspondendo a outros ambientes sociais, quando nossa tarefa particular está em precisar sua utilização e função num novo e diverso clima coletivo”. Neste sentido, Minas representa, de facto, uma síntese entre a recepção e a transformação das formas. Se em vários aspectos são claramente identificáveis as fontes adotadas, noutros o que é evidente é a mutação sofrida. Mas o que é mais significativo é o facto de se ter efetivamente gerado ali um quadro próprio de referências formais, cujas relações vão sendo cada vez mais identificadas pelos estudiosos. Para tal pesou não só a concentração geográfica da área de trabalho como a própria concentração dos artistas, vindos diretamente da metrópole ou de outras regiões da colónia, ou mesmo nascidos nas Minas, como o famoso Aleijadinho. A proximidade cronológica das encomendas também contribuiu para gerar um clima de emulação recíproca, quer entre os patrocinadores, quer entre os artistas.
É sobretudo no quadro de uma cultura barroca que se deve olhar para a sublimação do quotidiano em que se empenharam a sociedade e os artistas mineiros, fazendo com que mesmo os escravos participassem do processo, construindo igrejas tão, ou mais, ricas como as dos seus senhores. Mas é interessante observar que, apesar do ouro abundante, as igrejas de Minas não são tão douradas como as da Costa. Há nas Minas uma maior conjugação de elementos decorativos: a talha vai assumindo o vocabulário rococó e tornando‐se mais leve, a pintura tem um papel fundamental na decoração dos tetos e em painéis parietais e os azulejos estão bem menos presentes. Um autor já comparou a monumentalidade das igrejas do Nordeste às cantatas de Bach, enquanto a teatralidade das igrejas de Minas seria comparável às óperas de Mozart.
A generalidade dos estudiosos identifica uma tipologia na qual se enquadram as primeiras matrizes de Minas. Trata‐se de igrejas cujas fachadas correspondem a um padrão similar, com uma porta encimada por duas janelas de coro no tramo central, ladeada por duas torres de seção quadrangular onde se inscrevem as sineiras, com telhados em forma de pirâmide. O frontão, inicialmente reto, foi depois tomando algumas formas mais movimentadas, assim como a cobertura das torres. São várias as igrejas que cabem nesta descrição, com pequenas variações. Na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Nazaré, no distrito de Morro Vermelho, em Caeté (MG), a fachada segue o modelo usual, tendo no entanto três janelas no nível do coro, ao invés de duas, e um óculo trilobado no centro do frontão reto. Na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Mato Dentro (MG), são duas as janelas de coro, neste caso com sacada, e o óculo disposto no frontão ondulado tem a forma de uma flor‐de‐lis estilizada. Na Igreja Matriz de Santo António, em Santa Bárbara (MG), apesar da introdução de elementos decorativos de inspiração rococó na portada, a fachada conservou a tipologia geral das matrizes da primeira metade do século XVIII.
Em planta, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará (MG), a Sé de Mariana (MG) e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Santa Rita Durão, em Mariana (MG), estão entre as poucas que tem três naves. É maior o número das igrejas que segue a planta dominante no Brasil, de nave única, ladeada por corredores laterais, com a sacristia à altura da capela‐mor. Seguem esta tipologia: a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Prados (MG), que tem uma composição privilegiando o quadrado – mas com uma expressão mais atarracada e elementos decorativos de exuberância distinta da linguagem rococó da região, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas (MG) que tem uma série de elementos distintivos, como a galilé sob o coro e o coroamento das torres, formado por elegantes bulbos “em forma de pistilo” que Bazin afirma serem inspirados diretamente nas torres das igrejas do distrito de Viana do Castelo.
Silva Telles afirma que, por não terem função bem definida, os corredores foram aos poucos desaparecendo e as torres sineiras passaram a ficar salientes ao lado das naves. Cabe aqui, entre outros, o exemplo da Igreja de São Francisco de Paula, em Ouro Preto (MG) que, embora construída no século XIX, mantém as características das construções da segunda metade do século XVIII. Uma vez destacadas da nave, as torres serão um dos elementos mais significativos de que os artistas de Minas farão uso para a dinamização das fachadas.
Segundo Myriam R. de Oliveira, a Igreja de Santa Efigénia, em Ouro Preto (MG), parece ter sido a primeira igreja mineira a apresentar algumas importantes inovações, entre as quais o ligeiro recuo das torres em relação ao frontispício e a cornija semi‐circular acima do óculo. Manuel Francisco Lisboa, o pai do Aleijadinho, foi encarregado de diversas vistorias na obra, e a ele também já se atribuiu a autoria do risco, devido às semelhanças identificadas com o seu projeto da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté (MG), onde utilizou as torres salientes.
Nas igrejas do Aleijadinho, as torres têm um papel fundamental na composição. É interessante ver o processo na Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto (MG), cujo projeto foi começado pelo pai e finalizado pelo filho. A fachada frontal espessa‐se, ondula e avança para além das torres, que ficam isoladas nas três faces, por sua vez também encurvadas. Na fachada lateral aparece um elemento que resulta do espessamento da parede para conter as escadas helicoidais dos púlpitos. O coro foi também ondulado. A cimalha encurva‐se, ondulando, e o óculo desce do frontão para o corpo da fachada, conectando‐se por via do trabalho escultórico com a própria portada principal. No interior, é a parede do arco do cruzeiro que se movimenta, fazendo ângulos cortados, numa solução de dinamização interna da nave com vários antecedentes em Portugal (foi utilizada em Lisboa por Manuel Antunes na Igreja do Menino Deus), e que depois veremos ser outras vezes simulada só com os retábulos dispostos em ângulo.
Na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto (MG), o avanço da fachada é ainda mais evidente. As torres, desta feita cilíndricas, ficam um pouco recuadas e funcionam como um pivô de transição para a fachada lateral. A disposição convexa das paredes da fachada tem colunas de ordem monumental nos ângulos, criando uma leitura perspéctica que é reforçada pelo excepcional trabalho escultórico na portada conectada com um medalhão, que substitui o óculo, onde se vê São Francisco recebendo os estigmas, uma das obras‐primas do Aleijadinho. A igreja tem‐lhe sido creditada com base na tradição oral e vários autores também a vêem como a sua obra‐prima, mas há quem questione a atribuição do projeto arquitetónico e de alguns elementos do interior.
Na Igreja Matriz de São João Batista, em Barão de Cocais (MG), para a qual se cogita também a autoria do Aleijadinho, podem ver‐se alguns elementos utilizados nos seus projetos, como a cornija que se alteia formando um semi‐círculo acima do óculo, assim como a colocação das torres, redondas, num ângulo de 45o em relação à fachada. É provável que o Aleijadinho também tenha opinado nas modificações da fachada e torres da Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Sabará (MG) e a sua influência é evidente na Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Mariana (MG) onde as torres redondas foram projetadas para trás do frontão, como em São Francisco de Ouro Preto, mas sem o “movimento rotativo” característico desta última. Na igreja de São Francisco de Assis, em São João del‐Rei (MG), chama‐se a atenção para a profícua colaboração entre o Aleijadinho e Francisco de Lima Cerqueira, natural de Braga, a quem cabe creditar o desenho das torres circulares com varandins no coroamento, o gracioso feitio dos óculos e janelas laterais, a própria planta do edifício (com sua nave elíptica sinuosa, capela‐mor alongada e sacristia lateral) e o novo desenho da portada, concebido e executado em colaboração com o Aleijadinho. Na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, também em São João del‐Rei (MG), o mesmo mestre‐de‐obras repete os elementos básicos utilizados em São Francisco, mas introduz modificações substanciais nas torres.
A planta elíptica de São Francisco de Assis de São João del‐Rei remete para o importante conjunto de igrejas de planta poligonal nas Minas. Na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Ouro Preto (MG) e na Igreja de São Pedro dos Clérigos, em Mariana (MG), duas ovais entrelaçadas constituem a nave e a capela‐mor. Na Igreja do Rosário de Ouro Preto, as duas torres cilíndricas antecedem a nave, ladeando o pórtico com três arcadas. A construção de ambas as igre‐ jas foi feita por José Pereira dos Santos, o autor da Casa de Câmara e Cadeia de Mariana e construtor também da Igreja de São Francisco de Assis de Mariana (MG). Em Minas Novas (MG), na Igreja de São José, a nave tem planta octogonal com telhado piramidal de oito águas.
A Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto (MG) é um dos mais impressionantes interiores de Minas. A forma decagonal da nave não repercute na volumetria externa do edifício, que segue o tradicional formato retangular, mas anuncia‐se de certo modo na fachada. O interior é quase literalmente um cenário, que o carácter teatral das talhas e da pintura complementam. Trata‐se de uma estrutura postiça de madeira, com esteios que sustentam os retábulos e as tribunas, prolongando‐se até à cobertura – obra de carpintaria arrematada por António Francisco Pombal, irmão de Manuel Francisco Lisboa.
Uma tipologia que tem alguns exemplares significativos são as igrejas que têm uma única torre central, inserida numa fachada que repete a forma convexa de ângulos chanfrados, onde se pode incluir a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Conceição de Mato Dentro (MG). De planta poligonal, a fachada com torre única central desenvolve‐se em cinco planos, com chanfros em ligeira curvatura. No Serro (MG), a Capela de Santa Rita possui fachada chanfrada, em três planos, com torre única central com seção quadrada e telhado piramidal. Mas o exemplar mais significativo desta série, e um dos mais antigos, é a excepcional Igreja de Nossa Senhora do Ó, de Sabará (MG), cujo contraste entre a singeleza externa e a beleza do interior é surpreendente. O mesmo se poderia dizer da Igreja de Santana, do distrito do Inhaí, em Diamantina (MG), ou da Ermida de Nossa Senhora do Rosário em Itabira (MG) ou ainda a Igreja Matriz de Santo António de Itaverava (MG), que os especialistas consideram “um dos raros exemplos brasileiros de interior rococó nos quais talha, pintura e imaginária se conjugam em síntese ornamental perfeitamente integrada, e de grande força expressiva”.
Da surpresa dos interiores, cabe passar para a gravidade e beleza da implantação paisagística do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), com os seus profetas e Passos da Paixão, sem dúvida uma das obras maiores do Aleijadinho, um verdadeiro discurso poético a céu aberto. E no mesmo sentido desta vivência barroca do espaço podem ver‐se as Capelas de Passos inseridas em pleno tecido urbano, em Ouro Preto, Sabará ou São João del‐Rei, que continuam a ser usadas nas procissões da Semana Santa.
A distância e a menor riqueza das suas minas fez com que não se encontrem em Goiás e no Mato Grosso tantos e tão sofisticados exemplares como nas Minas Gerais. Há algo da sobriedade dos bandeirantes na Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário em Pirenópolis (GO), uma das poucas que se preservaram em Goiás, e que também se vê na Igreja de Nossa Senhora de Santana do Sacramento, na Chapada dos Guimarães (MT), ambas de dimensões avantajadas. Em Cuiabá (MT), preservou‐se a pequena Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Em Goiás (GO), a Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte e a Igreja de Nossa Senhora do Carmo têm naves octogonais no interior e a Igreja de Nossa Senhora da Abadia tem a particularidade de estar implantada na continuidade do tecido urbano, numa esquina da Rua da Abadia, com entrada lateral dando diretamente para a nave.
A antiga capital de Goiás (GO) guarda um dos exemplares mais interessantes de Casa de Câmara e Cadeia do Brasil colonial. Trata‐se um edifício aparentemente simples, mas que revela a erudição do seu desenho no conjunto de janelas dispostas simetricamente em cada lado da porta central. Uma pequena sineira no eixo da fachada remata o edifício. A mesma disposição com sineira central, mas com um tratamento muito mais sofisticado pode ver‐se nas Casas de Câmara e Cadeia de Mariana (MG) e de Ouro Preto (MG). Em ambos os casos, os edifícios são precedidos por escadarias que monumentalizam consideravelmente o conjunto. A de Mariana é obra de José Pereira dos Santos e, juntamente com as igrejas de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Carmo, juntas na mesma praça, forma um dos espaços urbanos mais significativos do Brasil colonial. O mesmo se pode dizer da relação que a imponente Casa de Câmara e Cadeia de Ouro Preto forma com o Palácio dos Governadores que lhe está diante. O projeto de Manuel Ribeiro Guimarães, com um pórtico central com escadaria e torre, inspirou‐se provavelmente no Capitólio de Roma, e na ocasião da sua construção a atual praça Tiradentes foi objeto de regularização, tendo sido demolidas diversas casas que obstruíam a perspectiva do edifício. Em contraste com a monumentalidade das sedes dos maiores concelhos das Minas, cabe ver o exemplo preservado da pequena Casa de Câmara e Cadeia de Pilar de Goiás (GO) com uma escada lateral e janelas vazadas no segundo piso: as enxovias do primeiro piso eram acedidas apenas por um alçapão no segundo.
Os chafarizes são um dos equipamentos urbanos mais presentes nas cidades mineiras. Dinamizam e embelezam o conjunto urbano e eram pontos de confluência na vivência da cidade. Na sua maioria, são chafarizes parietais com cartelas decoradas. Vejam‐se o Chafariz do Rosário, em Sabará (MG), em Ouro Preto (MG), entre outros, o Chafariz dos Contos, o do Passo de António Dias, o de Marília, obra de Manuel Francisco Lisboa, o do Alto das Cabeças, de Francisco Lima Cerqueira, e o do Alto da Cruz, onde se cogita a participação de Aleijadinho no busto feminino do coroamento. No Chafariz de São José, em Tiradentes (MG), a parte fronteira é circundada por muretas de cantaria com bancos, formando um pátio. O mesmo tipo de implantação em área aberta vê‐se no belo Chafariz da Boa Morte, em Goiás (GO).
Nos núcleos urbanos de Goiás é ainda possível ver as características primitivas da arquitetura civil urbana do período colonial, com casas na sua maioria térreas, de que o exemplo mais coeso é o da antiga capital, Goiás (GO). Os arraiais do norte, da região do Tocantins, como Natividade (GO), denunciam influências da Bahia.
Em Pilar de Goiás (GO) preserva‐se uma casa com rótulas na janela e pinturas no interior das salas, conhecida por casa da princesa, que é tida como o melhor exemplar residencial de edificação urbana dessa época existente em Goiás. As rótulas, gelosias ou muxarabis são painéis móveis em treliça de madeira, que eram colocados nas esquadrias para impedir que a luz e o calor excessivos penetrassem no interior da casa, e que este fosse devassado da rua. Eram prática corrente no Brasil colonial, recuperando um uso de origem mourisca que na metrópole vinha sendo abolido desde a legislação manuelina. No distrito de Santa Rita Durão, em Mariana (MG) há também uma casa com rótula e, em Diamantina (MG) são vários os exemplares, entre os quais a famosa Casa de Chica da Silva, com a sua bela varanda lateral, inteiramente guarnecida por muxarabis, assim como a Biblioteca António Torres.
Os interiores decorados com pintura são outra das características da arquitetura civil urbana de Minas, que espelha o requinte alcançado pela sociedade mineira. Entre outros exemplos pode citar‐se a Casa do Padre Toledo, em Tiradentes (MG). Oito dos catorze cómodos da casa possuem forros em gamela com pinturas de gosto rococó, destacando‐se a representação alegórica dos cinco sentidos (tema frequente nas pinturas decorativas da época), figuras da mitologia grega, e pinturas de frutas brasileiras na sala de jantar. Em Sabará (MG), núcleo importante de pintura, no piso nobre da Antiga Intendência e Casa de Fundição, onde vivia o intendente com a sua família, o teto do salão nobre é decorado com uma interessante pintura alegórica representando os quatro continentes.
Segundo Silva Telles, a arquitetura civil urbana seguia uma tipologia padrão, com as salas de uso social à frente, as alcovas no meio da habitação e uma grande sala de uso familiar atrás, que era também denominada de varanda, e fechada com uma sequência de janelas conjugadas que abrangia por vezes toda a largura da fachada posterior. O segundo andar, via de regra, era construído posteriormente, em boa parte dos casos já no século XIX. Esta construção desfasada levou a que se notem irregularidades na continuidade dos alinhamentos dos andares, como se vê no conjunto das Casas da Rua Direita, em Ouro Preto (MG). Um importante conjunto de sobrados é também o da Rua Direita, em Sabará (MG), e em Mariana (MG).
Do final do século XVIII são dois exemplos excepcionais da arquitetura civil de Minas: a Casa dos Contos em Ouro Preto (MG) com a bela escadaria monumental em cantaria no vestíbulo, e o forro com pinturas originais do século XVIII no salão nobre do piso superior, e a Casa Capitular em Mariana (MG) que é, segundo Bazin, “um dos mais elegantes edifícios rococó do Brasil”.
Um único exemplo de arquitetura rural é indicado nesta região, a casa da Fazenda Babilónia em Pirenópolis (GO) onde se pode ver ainda a permanência do modelo bandeirante, com o quarto de hóspedes e a capela enquadrando a varanda. Mas se esta única referência reforça o quadro profundamente urbano que marcou a dinâmica da ocupação do sertão do Brasil, não se deve daí inferir que as Minas tivessem sido só Minas. Também ali a ocupação rural se fez a par da urbana, garantindo a sustentabilidade do território e substituindo economicamente as minas, quando elas começaram a escassear.
Renata Malcher de Araujo