Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.
A COSTA FOI A PRIMEIRA ENTIDADE espacial do Brasil. O que se descobriu a partir do mar foi naturalmente a costa atlântica da América do Sul e, por um tempo, o descortinar do continente foi a única tarefa levada a cabo pelos navegadores. Como evidências materiais da sua passagem, mas sobretudo da sua leitura e apropriação mental do espaço, subsistem uns poucos padrões de pedra, similares aos que se usavam em África, hoje guardados em museus (há um no Museu do Forte dos Reis Magos, em Natal (RN)). As primeiras edificações terão sido as feitorias, mas nada resta que nos possa fazer saber como seriam. Caberá à arqueologia descobrir. A ocupação do território começou com a fundação das vilas e a instalação dos colonos. E uma coisa não se fez sem a outra. Este aspecto é importante, porque o que historicamente caracteriza o Nordeste do Brasil é a sua ocupação de base rural, sobretudo com os engenhos de cana‐de‐açúcar, mas também com o gado.
A capitania de Pernambuco, fundada por Duarte Coelho em 1535, com o significativo nome de Nova Lusitânia, foi o primeiro núcleo de presença contínua na costa do Nordeste. Olinda (PE), a capital fundada pelo donatário, é um dos poucos núcleos urbanos de que se conhece um documento fundacional, identificado como o foral de Olinda. Trata‐se mais propriamente, como diz Mota Menezes, de uma carta de distribuição de terras, onde está implícito o crescimento da vila que se fundava naquela altura.
Pode dizer‐se que cada núcleo urbano fundado no Brasil foi sempre um projeto em aberto. Aberto, antes de tudo, ao seu crescimento como núcleo, garantindo para isto as áreas de expansão. Mas, para além disso, o próprio método de trabalho poder‐se‐ia apresentar como um urbanismo profundamente processual, pois incorpora na sua base uma sábia gestão dos tempos de crescimento. A expressão paradigmática deste método é o arruamento, que nada mais é que a progressiva abertura de ruas, controladas quer pelos funcionários da Câmara, quer por engenheiros militares, dependendo dos casos. No conceito e na prática do arruamento sintetiza‐se um enorme sentido regulador de forte base geométrica e legislativa, que teve longa continuidade na criação urbana no Brasil colonial.
Mas a cidade é também um projeto em aberto no sentido da estruturação territorial. E aqui cabe ver a importância do binómio cidade/termo, fundamental para esta estruturação. Tal como na metrópole, a cada núcleo urbano correspondia uma área de jurisdição territorial, o termo da vila, que, via de regra, se estabelecia juntamente com a fundação do próprio núcleo (ainda que fosse impossível demarcá‐lo na mesma altura). Este termo subdividia‐se em duas partes: o rossio, mais próximo do núcleo urbano e sua área de expansão; e o termo propriamente dito, que era a área rural sob a alçada do núcleo. O padrão também é o mesmo que se utilizava em Portugal mas, no caso do Brasil, ambos os espaços assumem uma dimensão de crescimento implícito. O rossio adquire especial importância, uma vez que é o terreno previsto para a expansão urbana, que fica sob a administração da Câmara, que tem direito a aforar os terrenos nesta área. O rossio contém pois, virtualmente, a cidade em si, que para ali deveria crescer. O termo, por sua vez, incorpora a área rural, ela própria também em crescimento, garantindo assim a ocupação do sertão, que uma vez ocupado, deixava de ser sertão. Ou seja, a ocupação empurra o sertão, e cada nova vila, com seu termo, constrói sucessivamente um território em contínuo crescimento. Esta relação simbiótica e processual é importante para entender que a inegável base rural da colonização é acima de tudo uma base territorial, e que os núcleos urbanos, que são os centros políticos deste território, desempenham um papel fundamental na sua estruturação e construção.
Foi na costa este‐nordeste que este processo teve início, e observando precisamente o património construído, tal é ainda mais evidente. O que se vê é, desde logo, a construção em paralelo das instalações urbanas e rurais. Ambas se fazem ao mesmo tempo, consolidando reciprocamente a ocupação do território. Mas ambas partilham igualmente um inevitável carácter processual, que se materializa numa arquitetura também em contínua reconstituição. Daí que não seja nada fácil classificar os edifícios do ponto de vista cronológico. Porque, ainda que muitos possam ter tido uma construção inicial no século XVI ou XVII, o que existe hoje será, provavelmente, fruto de sucessivas modificações que foram sendo introduzidas nos vários tempos ou resultado das últimas e mais ricas intervenções, o que, via de regra, põe‐nos no século XVIII. No caso de boa parte do Nordeste, algumas reconstruções foram mesmo imperiosas, retomando obras que tinham sido abandonadas ou danificadas durante a dominação holandesa.
Há como que um paradigma do processo, que começa pelas construções de taipa e terra (é vastíssimo o vocabulário da taipa no Brasil: taipa‐de‐mão, taipa de pilão, pau‐a‐pique, etc....) com coberturas de palha, e que progride para a pedra e cal e a cobertura em telha. Este aspecto é interessante, porque revela que a ocupação do espaço e a sua conversão em território também é “matérica”. O processo denuncia, ao mesmo tempo e sem contradição, por um lado a adaptabilidade para o uso das técnicas tradicionais e dos materiais disponíveis, e por outro o valor estético projetado para cada um deles. São recorrentes na documentação os discursos contra as casas cobertas de palha, que se deviam mudar para garantir o aspecto civilizado das povoações. Vários religiosos reagiam de maneira similar às rudes capelas em que tinham de celebrar. Atribui‐se a um dos primeiros bispos enviados para o Brasil uma frase emblemática: “para Sé de palha, bispo de papelão”!
E no entanto, no final do século XVIII, não só o clero secular, como as ordens religiosas e as confrarias de leigos tinham no Brasil, e em especial no Nordeste, igrejas que em nada poderiam corresponder a esta ideia de pobreza. Uma das referências mais significativas da história da arte brasileira do período colonial é o livro de Clarival do Prado Valadares, Nordeste Histórico e Monumental. Monumental inclusive neste sentido “matérico”. É onde a presença da pedra é mais visível. Mas não só. Também nos interiores das igrejas se manifesta a riqueza dos retábulos em talha dourada, dos revestimentos em azulejos e das pinturas nos tetos. Obras que a cultura do açúcar pagou, e que representam um investimento contínuo na imagem da sua própria riqueza. É na arquitetura civil, urbana e rural, que se encontra o maior número de exemplos para citar, e onde se observam tipologias que funcionaram como matrizes de longa duração e de uso em quase todo o território colonial, como é o caso das casas de câmara e cadeia. Na arquitetura militar é onde tudo começou, logo é onde se vêem os exemplos mais antigos, mas é, sobretudo, onde se pode observar uma problemática muito interessante que desde o início se colocou para a defesa do Brasil.
No seu texto sobre o sistema de defesa de Salvador, Mário Mendonça aponta um aspecto crucial que, de facto, não é muitas vezes lembrado. É que, num primeiro momento, os inimigos em causa eram sobretudo os índios. Há assim uma espécie de defesa primária, com estacadas e muros provisórios que, em princípio, conseguia conter as armas de arremesso, e que terá sido o tipo de construção utilizado nas primeiras instalações e, mesmo em Salvador, foi uma das ações do mestre Luís Dias que depois não resistiu às intempéries, e que foi logo ultrapassada pelo próprio crescimento da cidade. Naturalmente que a defesa dos inimigos externos era vista como uma grande preocupação. Mas foi também desde logo apercebida como uma impossibilidade tecnológica. No caso de Salvador, terá sido evidente aos fortificadores que as dimensões da baía em si ampliavam de tal modo a escala de defesa da cidade que se tornava impossível pensar em sistemas envolventes. Este aspecto é significativo porque, numa leitura mais ampla, era este o dilema em causa em todos os pontos da costa. Isso obrigou os fortificadores portugueses a tomar opções que, desde o início, tinham em conta o papel de marcação territorial das fortificações e a ação de defesa feita, não absorvendo o núcleo urbano, mas a par dele, o que reforça o sentido de cidade aberta de que falávamos antes.
Não há efetivamente nenhuma cidade‐fortaleza no Brasil. Há cidade(s) e fortaleza(s). Há a leitura do território na base do pensamento de defesa. E este território inclui e ultrapassa a cidade. As fortalezas que compõem o sistema defensivo de Salvador são talvez o melhor exemplo desta leitura. São, como bem diz Mário Mendonça, edifícios verdadeiramente emblemáticos, de grande força plástica, em posição de destaque na paisagem da cidade, e de incontestável simbolismo na ocupação do território. A contínua implementação do sistema de defesa faz com que seja também Salvador o melhor lugar para ver as diversas tipologias que foram sendo utilizadas. Apesar das modificações sucessivas que foram sendo introduzidas em praticamente todos os fortes, é possível vislumbrar, por exemplo, no belo Fortim de Nossa Senhora de Monserrate, uma tipologia ainda utilizada no final do século XVI, sem baluartes e com torres. Originalmente o Forte de Santo António da Barra teria sido do mesmo tipo, mas no final do século XVII assumiu o desenho de um polígono estrelado, que, salvo pela torre e por algumas modificações introduzidas nos séculos XIX e XX, ainda é o que lá está. Mas a fortificação mais emblemática de Salvador é, sem dúvida, o Forte do Mar, ou de São Marcelo, com a sua forma circular, inspirada no Forte do Bugio, em Lisboa. O início da sua construção data da segunda metade do século XVII, tendo‐se concluído em 1716.
Outro exemplo significativo do sistema territorial de defesa de Salvador é o Conjunto Fortificado do Morro de São Paulo. A sua localização permitia controlar o abastecimento da cidade. Desde o século XVII foi sempre referido pela sua serventia em todos os relatórios dos engenheiros militares e foi, também por isso, objeto de contínuas obras. Integrado na defesa da baía, cabe ainda o Forte de São Lourenço na Ilha de Itaparica. E, nesta mesma leitura mais ampla, é preciso também ver o Forte de Santa Cruz (São Roque do Paraguaçu), que pode ser lido como o remanescente de outros eventuais redutos que se construíram nas proximidades dos rios navegáveis que desaguavam na Baía de Todos os Santos.
Como sabemos, a fundação de Salvador e a instalação do Governo Geral, em 1549, representaram um ponto de viragem fundamental na relação da coroa portuguesa com o território do Brasil. A localização de Salvador, no meio da costa brasileira, foi pensada, literalmente, como centro, geográfico e político, de uma outra fase da gestão do território. Importa referir que o Governo Geral não aboliu o sistema das capitanias hereditárias, mas conviveu com ele, sobrepondo‐se‐lhe de certo modo mas, ao mesmo tempo, também fazendo uso do que era a intenção primeira das capitanias: garantir a ocupação e rendimento da terra. Cabia no entanto à coroa a leitura mais vasta e de defesa da costa, sobretudo das áreas ainda não ocupadas. Salvador foi por isso o centro de sucessivas ações de desbravamento e ocupação. A primeira expedição foi para o sul, onde se fundou a cidade do Rio de Janeiro, em 1565, recuperando o domínio da região, que tinha sido invadida pelos franceses. Para o norte a sequência foi a ocupação da Paraíba, com a fundação da cidade de Filipeia (João Pessoa), em 1585, seguida da fortificação de Natal, no Rio Grande do Norte, em 1598. Em 1615, foi necessário expulsar novamente os franceses, desta feita do Maranhão, fundando‐se ali a cidade de São Luís, que foi o ponto de partida para a fundação de Belém, no delta do Amazonas, em 1616. Note‐se que estas expedições da coroa redundaram todas em fundações urbanas, em cidades, que foram pólos de ocupação regional, para as quais Nestor Goulart Reis Filho encontrou a expressão de “cidades do rei”, para as distinguir das “vilas dos donatários”. Do ponto de vista do urbanismo esta leitura é significativa, porque permite vislumbrar um quadro de ação paralela em que a coroa investia prioritariamente em determinadas áreas, mas não descurava o processo contínuo de desbravamento.
Às cidades do sul e do norte voltaremos a referir‐nos nos textos respectivos. Importa no entanto chamar a atenção para o facto de que, em qualquer dos casos, se tratou de ações em que a presença da engenharia militar foi fundamental. Na Paraíba a fortificação visava a defesa integrada da cidade e da várzea do Rio Paraíba, onde se instalaram os engenhos de açúcar. A Fortaleza de Santa Catarina do Cabedelo era o principal elemento deste sistema de defesa. A primeira versão, em taipa, pouco terá resistido. A segunda construção teve a intervenção de Francisco Frias de Mesquita, o engenheiro‐mor do Brasil (1602‐1645), que também interveio no desenho final do belíssimo Forte dos Reis Magos em Natal, onde se usou, pela primeira vez no Brasil, uma tenalha em forma de cauda de andorinha. Aqui a defesa era, uma vez mais, da barra do Rio Grande.
A necessidade de manutenção, acompanhamento e contínua renovação das várias fortificações obrigou a coroa a um investimento inequívoco na formação de engenheiros militares. Muitos autores já chamaram a atenção para a importância da sua ação no Brasil. A sua relação com o urbanismo é crucial e tem sido cada vez mais reafirmada. Mas o que cabe de facto reforçar é que os engenheiros representavam uma elite de conhecimento técnico, cuja atuação e formação, que a partir de determinada altura se fez, em parte, na própria colónia, ultrapassou largamente o âmbito da construção militar. O próprio Francisco Frias de Mesquita é desde logo um excelente exemplo. Para além dos trabalhos de fortificação que lhe são atribuídos, veremos a sua atuação direta quer no desenho da malha urbana de São Luís, quer no da Igreja de São Bento, no Rio de Janeiro. O mesmo tipo de relação se pode estabelecer para vários outros engenheiros, em especial a partir do século XVIII. A título de exemplo pode citar‐se a Igreja do Santíssimo Sacramento de Santana, em Salvador, cujo frontispício é da autoria do engenheiro Felipe de Oliveira Mendes ou, ainda em Salvador, o interessantíssimo caso da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia. O projeto foi concebido em Salvador pelo engenheiro Manuel Cardoso de Saldanha, e a estrutura em lioz da fachada foi executada em Lisboa, pelo mestre Manuel Vicente, que a levou depois para o Brasil. A Conceição da Praia tem ainda a particularidade das suas torres, colocadas em escorço com um dos cunhais voltados para a frente, o que é raro, quer no Brasil, quer em Portugal. Esta inequívoca intenção dinâmica revelada nas torres repete‐se no interior, onde a nave tem planta em forma de um octógono alongado. O mesmo tipo de planta em octógono foi adotado na Igreja de São Pedro dos Clérigos no Recife, obra do pedreiro/arquiteto Manuel Ferreira Jácome. As duas igrejas são contemporâneas, sendo ambas projetos iniciados na década de 1730 e terminados já na segunda metade do século XVIII. Nas duas, a “caixa externa” retangular da igreja não denuncia o plano poligonal do interior, e a relação com o espaço exterior é reforçada pela verticalidade que a ordem monumental da fachada imprime. Na Conceição da Praia, a relação faz‐se com a frente da baixa, com a praia propriamente dita. Na Igreja de São Pedro dos Clérigos, com o “pátio” de São Pedro, que nada mais é que uma praça ou “terreiro” retangular que enquadra a igreja e potencializa a sua leitura urbana. Veremos o quão significativa é esta forma.
No entanto, embora seja justo e correto ressaltar o papel dos engenheiros e intuir o peso da sua ação, inclusive na arquitetura religiosa, a verdade é que, de uma maneira geral, não é possível ainda estabelecer‐se com segurança a autoria da grande maioria das igrejas construídas no Brasil. O que não nos impede, de todos os modos, de procurar as suas principais linhas tipológicas. Mas aqui também importa dizer que se trata de um trabalho já começado, mas ainda muito longe de estar terminado. Os estudos têm privilegiado as principais ordens religiosas, em especial os jesuítas, os franciscanos e os beneditinos. Há que ter em conta, contudo, um aspecto que é, de certo modo, transversal, não só às ordens religiosas como também às obras do clero secular e às igrejas das confrarias de leigos. Trata‐se do que se poderia descrever como um quadro de emulação contínua entre todos, que está certamente na base da grande diversidade e riqueza da arquitetura religiosa do Brasil colonial. E é talvez também por isso que seja nas tipologias da arquitetura religiosa onde melhor se discutem as linhas de continuidade e rutura com a(s) arquitetura(s) da metrópole. Porque ao mesmo tempo que todas elas apresentam um inquestionável “ar de família”, surgem no Brasil determinados conjuntos que revelam particularidades expressivas.
Nesta região, um dos conjuntos de maior coesão é o que Germain Bazin denominou “escola franciscana do Nordeste”. Aponta como característica das construções franciscanas os claustros com arcadas no primeiro piso e, no segundo, colunas toscanas apoiadas diretamente nos frechais, cuja origem remete para o segundo claustro do Convento de Santa Crocce em Florença, mas também se poderia, eventualmente, relacionar com as séries de claustros portugueses ensaiados a partir do Renascimento, onde a solução combinada de arcos no primeiro piso e vergas retas no segundo é frequente. Mas é sobretudo nas fachadas e na relação que estabelecem com o vasto terreiro que as antecede, onde pontua o cruzeiro de pedra, que se reconhecem as igrejas franciscanas. E é precisamente nesta relação que Paulo Ormindo de Azevedo vê uma ligação possível com elementos de influência indiana, apontando as igrejas indo‐portuguesas de Cochim e do estado de Kerala como exemplos.
Elidindo um primeiro momento, ainda no século XVI, em que as construções iniciais podem ter correspondido ao ideal de pobreza franciscana, a partir do século XVII a historiografia refere dois modelos: o primeiro, mais simples, de que o melhor exemplo é o Convento de Santo António de Ipojuca (PE), fundado em 1606 e restaurado depois do domínio holandês em 1650, onde três janelas sobrepõem‐se aos três arcos da galilé, encimadas por um frontão reto. O segundo modelo foi dado pelo Convento de Santo António de Cairu (BA) (ca. 1660), composto por três pisos escalonados, com cinco arcos no primeiro, três janelas no segundo, ladeadas por volutas e pináculos, e, no terceiro, um nicho central também ladeado por volutas e pináculos. A forma triangular da composição da fachada é reforçada pela única torre sineira, que se dispõe algo recuada num dos lados e, sobretudo, pelo magnífico enquadramento visual que o terreiro diante da igreja permite.
A conjugação destes dois modelos repetiu‐se, com algumas variações, nas igrejas da ordem. É interessante o caso do Convento de Santo António de Igarassu (PE), onde se pode observar a influência dos dois modelos em campanhas distintas, como indica Nuno Senos. O mesmo tipo de influência dos dois modelos observa‐se no Convento de Nossa Senhora das Neves, em Olinda (PE) e no Convento de Santa Maria dos Anjos, em Penedo (AL). O modelo da fachada escalonada de Cairu é evidente nas ruínas do Convento de Santo António do Paraguaçu (BA). Reaparece nas obras, já da segunda metade do século XVIII, do Convento de Santo António de João Pessoa (PB), com um vocabulário quase rococó, valorizado pelo extenso átrio murado e decorado com azulejos representando episódios da Paixão de Cristo, o que remete para um dos usos do terreiro, que servia de espaço para as procissões incluídas na liturgia da Páscoa.
Na maior parte dos casos, os adros diante dos conventos franciscanos tinham forma retangular, reafirmando, como dissemos, a importância da sua leitura urbana, num evidente recurso perspéctico. Tal é o caso do Convento de São Francisco em Salvador, cujo “terreiro” se liga com o “terreiro de Jesus”, da igreja dos jesuítas que lhe está diante, dando origem a um dos espaços públicos mais significativos do Brasil colonial. Pode‐se ver ali, de certo modo, a materialização da emulação entre as ordens, pois a Igreja de São Francisco em Salvador é diferente das suas congéneres. Não tem a tradicional galilé e a torre única, mas sim três portas e duas torres, como que respondendo à igreja dos jesuítas. Mas o que mais distingue a Igreja de São Francisco é o magnífico revestimento em talha dourada que a recobre completamente e faz com que seja impossível dissociar arquitetura e decoração. É uma das ditas “igrejas‐retábulo” que é uma das mais notáveis expressões das singularidades do barroco no Brasil, a que se deve juntar nesta região a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco no Recife, com toda a propriedade chamada de Capela Dourada.
As igrejas das Ordens Terceiras de São Francisco, via de regra, encontram‐se adossadas à nave da igreja conventual. A Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Salvador é neste aspecto uma exceção. Mas não só neste; é também um caso único a sua fachada completamente esculpida em calcário, revelando uma provável influência do plateresco espanhol no mestre Gabriel Ribeiro, a quem se atribui o trabalho.
Sobre a igreja dos jesuítas em Salvador, a sua principal casa no Brasil e hoje catedral primaz, muito se tem dito. Reafirmar que se trata de um dos mais importantes edifícios religiosos da expansão portuguesa é, em todos os sentidos, uma redundância. Para além dos vários outros aspectos culturais que a presença dos jesuítas na América evoca, do ponto de vista específico da história da arte é incontestável o peso e a influência que as formulações estéticas da ordem tiveram na arquitetura colonial do Brasil. A dita “planta jesuítica”, de nave única, com ou sem capelas laterais inter‐comunicantes, é a tipologia mais frequente nos templos brasileiros. Não é, com efeito, um desenho exclusivo da ordem, mas é significativo que a referência mais comum sejam os jesuítas, mesmo depois das advertências feitas já por Lúcio Costa no seu estudo pioneiro quando afirmava: “atribuir‐se, pois, à designação de ‘arte jesuítica’ uma tão grande amplitude é, evidentemente, incorreto” (Costa, 1941).
Mesmo tendo em conta os cuidados necessários, é claro o impacto das formas veiculadas não só nas plantas, como nas fachadas. Desde o modelo mais simples, com uma porta, duas ou três janelas e frontão em empena com um óculo central, que os padres utilizaram em várias igrejas das missões e que reaparece em muitas capelas e igrejas matrizes de vilas menores, que em vários casos foram de facto anteriormente igrejas de missões, até ao modelo mais sofisticado da fachada da igreja de Salvador, cuja base formal reinvoca diretamente a linha genética do Gesú de Roma e das igrejas da Companhia em Portugal. Importa, em especial no caso dos jesuítas, chamar a atenção para a manifesta erudição do desenho, ainda quando é simples. O melhor exemplo para tal, cronologicamente o primeiro a referir‐se no Nordeste, é a Igreja de Nossa Senhora da Graça em Olinda. Na sua belíssima e sóbria fachada é possível ver com clareza a relação com a Igreja de São Roque em Lisboa, estabelecida pelo arquiteto jesuíta Francisco Dias. Não é justo descurar a importância que as outras ordens religiosas também tiveram (sobretudo carmelitas e beneditinos), mas não caberia aqui elencar comparações tipológicas, para as quais, como já dissemos, não há sequer estudos que as sustentem. Mas não se pode deixar de afirmar o que é talvez a característica mais impressiva do património edificado de origem portuguesa no Brasil, que é a presença tutelar e, ao mesmo tempo, quase simbiótica das igrejas. Elas são muitas e estão em toda a parte. Elas impõem‐se às cidades, elas desenham as cidades. Se há aspecto em que o epíteto barroco cabe bem (para além, evidentemente, de todo o esplendor dos seus interiores) é, sem dúvida, pela relação que as igrejas estabelecem com o desenho urbano. A sua implantação pretendia, sempre, a melhor visão, seja por se colocar em ponto alto, seja por se abrir para uma praça, largo ou terreiro. Mas é importante também chamar a atenção para o papel concreto que as suas implantações tiveram para a dinâmica do crescimento urbano. Os jesuítas quase sempre reivindicavam os centros, e os franciscanos foram progressivamente aproximando‐se cada vez mais. Quanto aos beneditinos, foi via de regra a cidade que se aproximou deles.
Mas não é só na dinâmica de crescimento urbano que as igrejas têm um papel importante, nem apenas nos centros maiores. Na verdade, mesmo nos núcleos médios e menores a sua presença é impressionante, quer em qualidade, quer em quantidade, o que fica atestado na série de exemplos que se elencam neste livro.
Em Pernambuco veja‐se o caso da vila de Igarassu, a primeira povoação oficial da capitania, onde se encontra a Igreja Matriz de São Cosme e Damião. Tradicionalmente identificada como a igreja mais antiga do Brasil, não é de facto a primitiva igreja, mandada fazer por Duarte Coelho no século XVI. Mesmo esta só se concluiu no século XVII, e foi reconstruída depois do incêndio provocado pelos holandeses. O portal, quase clássico, enquadrado por duas pilastras, é o elo de ligação entre os sucessivos edifícios que são o mesmo. Mas para além deste belo exemplar, que representa uma espécie de singela depuração, há ainda, na mesma pequena vila, o magnífico exemplo do convento franciscano de Santo António, que já referimos e, já posterior, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Recolhimento do Sagrado Coração de Jesus, noutra tipologia de fachada com cinco vãos, que tem vários exemplares nesta região.
Em Alagoas, cabe o exemplo de Penedo, a vila da foz do Rio São Francisco, onde se destacam não só o já referido convento franciscano de Santa Maria dos Anjos, mas também a imponente Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a Igreja de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos e a excepcional Igreja de Nossa Senhora das Correntes, com um interior em talha verdadeiramente sofisticado. Em São Cristóvão, a capital da antiga capitania de Sergipe, novamente o convento franciscano, mas também a Igreja e Convento do Carmo, que aqui revela a influência do modelo franciscano com galilé e três janelas, e a seu lado, a Igreja da Ordem Terceira do Carmo que, na fachada de composição mais “simples”, de apenas uma porta e duas janelas no piso superior, faz conjugar os elementos decorativos em pedra calcária com um frontão de grande verticalidade que dá leveza e dinamismo ao conjunto. Ainda em São Cristóvão é muito interessante a fachada da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em que a mesma composição simples de porta e duas janelas, ladeada por uma única torre, é valorizada pelos cunhais em pedra e por um portal que, sendo obra do século XVIII, remete para um ascendente de matriz clássica. O mesmo se pode dizer da Igreja Matriz de Santo Amaro das Brotas (SE), também do século XVIII, cujo singular portal em pedra revela uma síntese inesperada para a sua cronologia: nos umbrais aparecem pseudo‐cariátides que remetem para um anacrónico vocabulário maneirista, completado no piso superior por um nicho emoldurado por elementos florais e volutas. Esta espécie de releitura dos valores eruditos trabalhados por artesãos nativos fazendo conjugar, por vezes na mesma obra, elementos oriundos de matrizes distintas, é um dos dados mais presentes e significativos de toda a arquitetura religiosa no Brasil colonial
Na Bahia podem citar‐se várias vilas, mas o exemplo mais eloquente é provavelmente o de Cachoeira, que representa a dinâmica urbana da região do Recôncavo, espelhada na riqueza do seu património edificado. Na arquitetura religiosa, cabe citar o belo portal em lioz da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, com três arcos plenos coroados por um nicho, exemplo paradigmático desta erudição filtrada dos tratados de que falávamos (o que cabe para o portal da Igreja Matriz de Santo Amaro da Purificação, também no Recôncavo). E na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, contígua ao convento, surge a exuberância da talha dourada que a reveste por inteiro, com eventuais influências orientais, de que se voltará a falar, sobretudo na região das Minas Gerais. Na arquitetura civil, Cachoeira tem um conjunto interessantíssimo de sobrados, remanescentes ainda do século XVIII, com uma tipologia específica de loja e sobre‐loja, que se desenvolveu ali em função das cheias do Rio Paraguaçu. Mas um dos edifícios mais representativos do património de Cachoeira é a casa de câmara e cadeia.
As casas de câmara e cadeia representam uma importante tipologia da arquitetura do Brasil colonial. Foram objeto de um estudo pioneiro de Paulo Tedim Barreto, que revelou a existência de uma matriz formal fundada sobre uma planta em dois pisos, com as instalações da cadeia no rés‐do‐chão e as salas do senado da câmara no piso nobre. São edifícios sóbrios mas de intencional impacto urbano, reforçado, em vários casos, por escadarias ou arcadas, às vezes torres, e ainda pela posição, via de regra isolada, dando a ver o conjunto das suas fachadas. A “cabeça de série” no Brasil pode e deve ser identificada com a Casa de Câmara e Cadeia de Salvador, que terá sido o primeiro exemplar, mas a referência formal vem da metrópole, a partir das renovações das casas de câmara que se fizeram sobretudo a partir do reinado de D. Manuel I. Na Bahia são várias as que se conservaram, entre os quais as de Cachoeira, Jaguaripe, Maragojipe, São Francisco do Conde, Porto Seguro e Rio de Contas. Outro conjunto significativo conserva‐se no Ceará, em Aracati, Aquiraz, Caucaia e Icó, mantendo o mesmo modelo mas algumas construídas eventualmente já no século XIX. Um dos casos mais interessantes é o de Vila Flor (RN). A construção da casa de câmara fez‐se na segunda metade do século XVIII, na sequência da legislação pombalina que determinou a elevação a vila dos antigos aldeamentos missionários. A importância do gesto político da criação da vila reflete‐se na imponência do edifício da câmara, que apresenta solução singular de pórtico com arcadas em três das suas fachadas.
Dizíamos antes que a construção do território brasileiro não pode ser entendida senão tendo em conta, em paralelo, a cidade, o termo e a região. Onde este processo é mais evidente, do ponto de vista material, é precisamente no Nordeste. Embora muito já se tenha perdido, conservam‐se ainda vários exemplares da riquíssima arquitetura rural que sustentou a cultura do açúcar e outros ainda que se ligam à expansão da pecuária. Nos últimos anos têm sido feitos estudos sobre o tema, que foram cruciais não só para identificar elementos comuns e estabelecer datações mas, sobretudo, para reivindicar a preservação destes conjuntos. São vários os exemplos aqui apresentados. Desde as tipologias mais simples, de casas térreas com alpendres, que sobrevivem nas casas de fazendas de gado do Piauí, até aos exemplares mais sofisticados como o Engenho Freguesia, o Engenho de São Roque de Paraguaçu e o Engenho Lagoa, na Bahia, ou, em Pernambuco, o Engenho do Poço Comprido. De uma maneira geral, as casas grandes mais imponentes eram as dos engenhos mais distantes das cidades, revelando que o investimento nas infraestruturas domésticas era maior quando o engenho se encontrava isolado e exigia a presença dos proprietários por mais tempo. Naturalmente que os grandes proprietários das casas rurais eram também os proprietários dos mais imponentes solares urbanos, de que Salvador possui ainda um conjunto significativo de exemplos.
Mas os edifícios que de certo modo representam uma especial singularidade do património de origem portuguesa no Nordeste são as capelas rurais. Como as igrejas das cidades, elas também marcam a ocupação do mais vasto território. Aparecem integradas nos conjuntos das instalações rurais, onde foram sempre o edifício que mereceu maior investimento a todos os níveis. Para além de várias outras razões, este empenho na sua construção foi um dos motivos por que, em vários casos, se preservaram só as capelas, tendo‐se perdido os outros edifícios. Mas há também muitos casos em que se construíram de raiz só as capelas. Construíram‐se, literalmente, no campo, sacralizando a própria paisagem. Um dos exemplos mais interessantes deste caso é a Capela de Nossa Senhora do Socorro, em Santa Rita (PB), que foi construída como voto pela vitória portuguesa numa batalha contra os holandeses, em 1636. Esta capela ostenta um alpendre de colunas toscanas, reputado como o mais erudito da região. O alpendre frontal, ou copiar, é um elemento característico de várias capelas rurais no Nordeste. Era, ao mesmo tempo, uma solução de adequação ao clima, permitindo o resguardo de quem ali vinha para os ofícios religiosos, mas também funcionava como separação hierarquizada do espaço da igreja, deixando uns dentro e outros fora.
No mesmo município de Santa Rita (PB) pode ver‐se a capela do antigo Engenho do Una, obra do início do século XVIII, com um belo portal em pedra, mas que tem sobretudo a particularidade de ter planta hexagonal, o que a faz aproximar‐se, numa longa linha genética, da excepcional Casa da Torre de Garcia d’Ávila, em Tatuapara, Mata de São João (BA), cuja construção, iniciada no século XVI, exemplifica quer o empenho logo dos primeiros tempos, com a sua magnífica capela hexagonal renascentista, quer o processo de contínuo investimento de que a casa rural foi objeto. Com este exemplar excepcional, que do ponto de vista cronológico deveria ter sido o primeiro, finda‐se esta brevíssima introdução, convidando à leitura dos muitos exemplos que se seguem.
Renata Malcher de Araujo