Enquadramento Geral

Este texto foi originalmente escrito, pelo respetivo coordenador, para a edição impressa como introdução geral ao volume correspondente à área do globo em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. É complementado pelos textos, da mesma autoria, relativos a cada uma das subdivisões geográficas segundo as quais as entradas desse mesmo volume foram agrupadas.
Algumas palavras prévias: descobrimentos, identidades e património

Dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade, num dos seus mais conhecidos poemas: “Precisamos descobrir o Brasil!”. É interessante esta afirmação, porque remete para a reinvocação do elemento simbólico da génese do Brasil, o seu “descobrimento”. Descobrir é um verbo profundamente caro, quer aos brasileiros, quer aos portugueses. Mas o que é especialmente significativo no verso de Drummond é que a ideia de descobrimento seja lida menos como um dado do passado e mais como um método contínuo. Assim, a evidência de que precisamos descobrir o Brasil (nós todos e não apenas os brasileiros) não é por certo uma evocação, nem uma ironia, relativa ao episódio do descobrimento histórico. É antes a assunção desassombrada de que o processo da contínua descoberta é, em si, a própria história e que é preciso que ela se faça.

Precisamos, pois, e de uma maneira bem mais ampla, (re)descobrir continuamente a história. É neste sentido que surge, de certo modo, o próprio conceito de património. Todos sabemos que foi o risco de perda física, concreta, que deu origem ao conceito contemporâneo de património, no sentido de associar a classificação e inventário à salvaguarda dos bens móveis e imóveis. Tal processo conduziu a uma visão museológica tanto dos objetos como, em determinados aspetos, também da própria arquitetura, que passou a ser vista numa leitura didática de grande museu em escala real. Mas mais importante que isso, e mais basilar para a noção que finalmente se afirmou, foi a nova visão da própria história. A história contemporânea funda-se sobre o signo revolucionário da mudança. No renascimento, a consciência do tempo histórico dá-se pelo mergulho no passado. A leitura do presente é emulada pelo ideal da antiguidade. Na idade contemporânea, o presente instaura-se como uma obsessão, denunciada pela própria identificação do período em causa. Contemporâneo é o nosso tempo, o tempo em que vivemos, do qual não escapamos, mas que nos escapa pela sua mudança constante. A idealização do presente fixa-se no devir, no futuro, mas a sua âncora é o passado.

Como bem diz Horta Correia, “o passado funciona, para o homem contemporâneo, como a consciência do irreversível, do irremediável, da perda. E, consequentemente, como categoria primeira da identidade, como condição sine qua non da identificação. Existe pois a convicção de que sem os vestígios materiais ou espirituais do passado não há memória, e, sem memória, não é possível construir o futuro pela simples razão que não há onde enraizar o presente.” (Correia, 2007:3)

É a pertinência da memória que nos remete para o título e para os objetivos desta obra. A intenção do projeto como um todo é identificar, na medida do possível e até onde os nossos conhecimentos atuais alcançam, o Património de Origem Portuguesa no Mundo: Arquitetura e Urbanismo. No caso deste volume, trata-se do Património de Origem Portuguesa na América do Sul. O título é correto, e adequado aos seus legítimos propósitos, mas não deixa de ser problemático. E é problemático porque se poderia perguntar em que medida cabe a Portugal reivindicar um património seu no mundo, dado que o mundo não é naturalmente seu. É talvez um falso problema, mas cabe abordá-lo, sobretudo porque o património que se vai apresentar neste volume é o que é reivindicado, também legitimamente, como património brasileiro.

Com efeito, a origem da eventual problemática reside igualmente num outro aspeto da génese do conceito de património. É que a mesma base que o sustentou foi a que nutriu também a ideia da memória coletiva como alicerce da(s) identidade(s) nacional(is), que entretanto se afirmava(m). O impulso romântico associou o “espírito do povo” a esta herança do passado e o processo de formação e reconfiguração das nações contemporâneas não se pode desvincular deste cunho ideológico. Cada uma delas reivindicou para si o que lhe parecia estabelecer a sua identidade coletiva, afirmando idiossincrasias, procurando, nos mais variados campos da cultura, linhas “genéticas” específicas que marcassem a sua diferença. Ainda que pareça contraditório, esta busca não é senão o outro lado da mesma moeda. Porque é ainda a consciência da inexorabilidade da mudança e da perda, ou seja, a perceção fundamental da contemporaneidade, que faz com que cada comunidade procure no passado os fundamentos da sua individualidade e, portanto, da sua existência.

Embora não se possa, historicamente, dissociar o processo da sua vinculação ideológica, a verdade é que esta afirmação identitária dos povos foi fundamental para uma outra tomada de consciência, porque a busca das raízes de cada um levou, progressivamente, ao encontro do tronco comum.

Este processo é crucial e nele reside, em boa parte, a pertinência cada vez maior do conceito de património. A consciência de si é um dado elementar da identidade pessoal, e nesta consciência pesa inevitavelmente a memória do sujeito, que se vê a si próprio no tempo e no espaço, no passado, no presente e no futuro. Do mesmo modo, a consciência do comum é basilar para o conceito de património e para a interiorização da necessidade de preservar a memória coletiva no tempo e no espaço (Oliveira, 2008:19). No decurso histórico desta literal tomada de consciência coletiva, ela própria foi ampliando as suas leituras. E se o primeiro nível da ideia de comum é a família, daí passou-se à cidade, da cidade à nação, da nação à humanidade. O que se revela nos mecanismos cada vez mais ampliados de preservação.

O caminho fez-se então da noção restrita de monumento ao conceito alargado de património da humanidade que hoje partilhamos. Mais ainda, o próprio conceito ampliou-se para abrigar não só os dados da cultura imaterial como as preocupações ecológicas. Uma vez mais, é a noção da perda iminente que impulsiona o sentido de responsabilidade para com o futuro. E não é à toa que tenha sido sobretudo depois da segunda guerra mundial, quando outras ruturas radicais se evidenciaram (o genocídio e a bomba atómica), que se deu esta convergência entre o cultural e o natural.

O facto de se evocar nesta obra o “património de origem portuguesa no mundo” é um sinal inequívoco deste processo. Porque o mundo amplia e anula Portugal, este património assume um carácter não nacionalista, e sim universalista. Não se fala aqui de património português porque pertença aos portugueses, nem porque tenha pertencido. Fala-se de património de origem portuguesa por fazer parte da herança cultural portuguesa no sentido lato. Ou seja, é património de origem portuguesa não porque os portugueses o tenham legado a outras culturas, como uma espécie de testamento, mas porque estas o partilham e o portam como bagagem cultural sua também. Não se deve por isso ler a expressão como saudosismo ou como evocação de um passado de poder que já não existe, mas ao contrário, como a superação da própria perda material e o encontro do elo virtual da cultura. Sobretudo desta cultura que se fez sob o signo da viagem e da descoberta.

E assim voltamos ao verso de Drummond: “Precisamos descobrir o Brasil!”. A frase faz eco do discurso dos modernistas da famosa Semana de Arte Moderna de 1922, que é, do ponto de vista da história do Brasil, o marco fundamental para o processo de tomada de consciência dos valores patrimoniais, de que o próprio Drummond é um dos protagonistas.

Precisamente quando se comemorava o centenário da independência, e depois de finda a monarquia, o Brasil se recolocou, com alguma acuidade, a questão da sua identidade. A nova geração queria saber quem era, tanto no sentido da sua relação com o passado como com o presente. A Semana de Arte Moderna (11-18 de fevereiro de 1922), que se realizou em São Paulo, foi a manifestação por excelência deste questionamento/afirmação. Este aspeto é importante, porque a geração que ali se comprometia com a vanguarda e assumia a modernidade como afirmação estética foi a mesma que reivindicou o direito à memória. A genial formulação do manifesto antropofágico – “tupi or not tupi, that is the question” – resume o paradoxo da busca identitária da jovem nação, que precisava, como sugeriam os modernistas, “deglutir” a sua história num canibalismo simbólico. Ou seja, que precisava ir de encontro às bases da sua cultura e da sua identidade, reivindicando o património no seu sentido mais vasto.

De todos os intelectuais do movimento moderno, Mário de Andrade é talvez o que melhor representa esta busca do que ele designava como “brasilidade”. Queria encontrar o que verdadeiramente identificava o país. E assume este processo como uma genuína descoberta, renovando deliberadamente o próprio sentido da palavra, tão cara para a nação. Todo o grupo de algum modo participou deste processo, mas ele ainda mais, porque se empenhou em efetivas viagens de descobrimento. São famosos os seus passeios para o interior, fotografando tudo o que podia, recolhendo relatos de música e folclore. É famosa em especial a dita “viagem de Descobrimento do Brasil”, realizada em 1924, em que Mário de Andrade leva o grupo modernista para Minas Gerais. É a este movimento que cabe creditar, em boa parte, a valorização do barroco mineiro, a identificação de Aleijadinho e o reconhecimento da sua arte mestiça, assim como da tradição das músicas e festas herdadas do barroco, propondo no fundo uma visão renovada do próprio barroco.

O entusiasmo destes anos é fundamental, assim como é fundamental também a associação a uma espécie de reserva cultural que se projetou sobretudo para o Brasil do interior. Para o interior de São Paulo, para onde Mário Andrade viajava todos os fins-de-semana, de encontro às casas dos bandeirantes, descobrindo a arquitetura rural do período colonial. Para as vilas de Minas Gerais que se tinham mantido isoladas, e que por isso evocavam o tempo do barroco. E para todo o interior do Brasil que, em contraste com o litoral, onde estavam os grandes centros urbanos, surgia como um país desconhecido ao próprio país.

Este aspeto é especialmente importante porque as vilas do interior foram, de certo modo, assumidas como centros inatos de preservação – tanto no que dizia respeito às tradições culturais (festas, músicas, etc.) como em termos de arte popular (artesanato) e arquitetura. Assim, desde o início, o interesse na preservação destes conjuntos não pensava apenas em preservar o sítio, mas a cidade enquanto base da cultura – e isso se fez muitos anos antes das diretivas para o património imaterial, que já estavam implícitas na visão modernista.

É pois a esta intelectualidade ligada ao modernismo que, a despeito da conjuntura política mais fechada dos anos 30, se deve a criação, em 1937, do então Serviço, hoje Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O órgão, que foi pioneiro na América Latina, fez-se tendo como base um anteprojeto de Mário de Andrade (1936) retrabalhado por Rodrigo Melo Franco de Andrade, que viria a ser o seu primeiro diretor. Desde então, o IPHAN tem desenvolvido um trabalho excecional de pesquisa, levantamento, inventariação, conservação e restauro do património brasileiro. Apesar das inúmeras dificuldades, das vicissitudes políticas e até dos balanços, mais ou menos positivos, da sua atuação nas diferentes regiões e conjunturas, é, sem sombra de dúvida, sobretudo devido ao trabalho desenvolvido ao longo dos anos pelo IPHAN que hoje podemos ter uma importante visão de conjunto do património construído no período colonial no Brasil.

A relação de cidades e edifícios que constitui o índice deste volume foi feita tendo em conta este património de pesquisas. Listaram-se no total 210 municípios e cerca de 690 edifícios. Haverá, certamente, lacunas. Muitos exemplares que poderiam hipoteticamente integrar a lista não resistiram à passagem do tempo e às mais variadas maneiras de destruição. Outros não terão sido sequer identificados e continua, eventualmente, por descobrir o seu valor patrimonial. Outros ainda terão sido destruídos mesmo depois de alguma tentativa de proteção. Mas os “sítios e monumentos” aqui listados, para usar o vocabulário consagrado na área de património, representam uma amostra significativa do que foi o longo processo de construção material do Brasil.

 
Modos de conhecimento: inventários, relações e história

Um dado comum de todos os estudos de património é a prioridade da identificação dos objetos a serem preservados. Sem reconhecer não é possível salvar. Trata-se, com efeito, de um verdadeiro (re)conhecimento, na medida em que para a identificação efetiva do valor patrimonial dos objetos é preciso o seu conhecimento prévio. É por isso incontestável, nos estudos patrimoniais, o papel desempenhado pelos inventários.

Mas se os inventários são a base metodológica dos estudos de património, na sua própria origem está toda uma série de textos cuja tipologia remete para o mesmo princípio de listagem e identificação. Poder-se-ia remontar aos vários tipos de róis e listas que desde sempre se usaram para identificar conjuntos de objetos para os mais diversos fins. A história faz especial uso desse tipo de documentos, desde as listagens de carregamentos de navios até aos bens inventariados em testamentos, ou catálogos de livros. O objetivo fundamental destes textos é, por um lado, garantir que se tenha uma base onde se possa conferir as existências e por outro, que esta base, mantendo-se independente das coisas, possa ser ela própria um documento que ateste o conhecimento daquelas existências. Trata-se de textos que se propõem ser, de facto, relações (que é outro dos títulos que tomam) entre as realidades e o conhecimento delas. São textos que servem sobretudo para confirmar a existência das coisas e para validar essa existência para quem não as pode ter presentes.

No caso do Brasil, podemos pensar quão importante foi este tipo de textos não apenas para a reconstituição da sua história mas, acima de tudo, para o próprio conhecimento do lugar. Já a carta de Pêro Vaz de Caminha listava atributos para descrever uma paisagem que tinha de ser (re)conhecida por quem nunca a tinha visto. Desde então, todo o processo de desbravamento e ocupação do território se foi fazendo acompanhado de relatos e relações que iam sucessivamente acrescentando conhecimento e, também por isso, garantindo a posse e usufruto do território. Neste sentido, e reafirmando o verso de Drummond com que se começou este texto, todos concordaremos que o Brasil não foi descoberto em 1500. Não poderia ter sido. O Brasil, na sua plenitude, foi sendo descoberto (e revelado) ao longo dos três séculos de colonização. Na verdade, o longo processo implicou efetivamente não um, mas uma série de descobrimentos.

Todos estes descobrimentos sucessivos foram sendo apresentados e confirmados do ponto de vista documental. Este dado é significativo porque pode dizer-se que a construção literal do Brasil se fez a par da sua construção textual e imagética. Era preciso descrever, listar, mandar relatos para o rei do seu património no além-mar. Património este que era visto na corte nesta relação intermediada pelos textos, pelos mapas, pelos desenhos. Mas para além dos documentos concretos produzidos durante o processo, cabe chamar a atenção para a própria produção historiográfica que lhe é concomitante.

Os textos da historiografia do período colonial são fontes privilegiadas para a identificação das cidades e dos edifícios que foram sendo realizados durante o processo de construção do Brasil. Em maior ou menor grau, também fornecem dados significativos para desvendar mecanismos de encomenda, autoria e eventuais escolhas estéticas envolvidas. São especialmente importantes enquanto sínteses que revelam sedimentações e, neste sentido, os elementos que são ali indicados adquirem um peso específico do ponto de vista da memória. E este aspeto sobretudo importa-nos para a leitura do seu valor patrimonial.

Os nomes mais sonantes, os primeiros ainda de finais do século XVI, são, como sabemos, a História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, de Pêro de Magalhães Gândavo, que foi impresso em 1576, o Roteiro Geral, ou Tratado Descritivo do Brasil de Gabriel Soares de Sousa, escrito em 1587, e divulgado em manuscritos, a partir de Madrid, mas só impresso no século XIX e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil do jesuíta Fernão Cardim, da década de 80-90 do século XVI.

O texto mais importante da produção historiográfica do século XVII é a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, concluído na década de 20-30, mas que também ficará manuscrito até ao século XIX, embora fosse conhecido dos eruditos do século XVIII. Apesar de não serem exatamente textos de história cabe referir, ainda nas décadas iniciais do século XVII, os relatórios de Diogo de Campos Moreno, em especial ao Livro que dá Rezão do Estado do Brasil, ilustrado com mapas de João Teixeira Albernaz, de que existe mais de um exemplar manuscrito. São atlas, produzidos durante o período de União das Coroas, que se integram no âmbito das Relaciones Topográficas de Castilla y Geográficas de las Índias, um vasto processo de inquéritos encomendados pelos reis espanhóis para terem a dimensão marítima do império. No caso da costa da América Portuguesa, são especialmente significativos porque associam ao texto o desenho do território em si e incluem dados materiais, sobretudo relativos à defesa. O título específico de um destes relatórios de Diogo de Campos Moreno é precisamente Relação das praças fortes, povoaçois, e cousas de importância que Sua Mages¬tade tem na costa do Brazil... No anno de 1609.

No século XVIII é importante referir as academias. Em 1730, Sebastião da Rocha Pitta, baiano, da Academia dos Esquecidos, edita a História da América Portuguesa, desde o ano de mil quinhentos do seu descobrimento, até o final de 1724. Em 1797, Frei Gaspar da Madre de Deus, da Academia dos Renascidos, publica em Lisboa as suas Memórias para a História da Capitania de São Vicente, hoje chamada de São Paulo. Já no século seguinte, e com a família real no Brasil, é publicada no Rio, em 1817, A Corografia Brasílica, ou relação histórico-geográfica do Reino do Brasil do padre Manuel Aires do Casal.

Em qualquer destes textos, o que se apresenta é um misto de história política e geográfica. É tão importante a história da conquista e da colonização, com a respetiva ação dos administradores coloniais, como a descrição do território, que é apresentado não só pelas suas características geográficas mas também pela sua fauna e flora específicas e pelas produções obtidas do cultivo da natureza. Em todos os autores a materialidade do espaço que se foi construindo é descrita e caracterizada. Identificam-se as áreas de desbravamento, as grandes ocupações rurais e as vilas e cidades. Estas são invocadas não só enquanto sedes administrativas, mas como efetivos suportes de toda a organização territorial. Em muitos casos são fornecidas indicações especialmente significativas sobre a sua forma e edifícios.

Gabriel Soares de Sousa descreve Salvador dizendo que foi “arruada por boa ordem”, e fornece uma série de informações sobre a arquitetura rural dos primeiros anos da ocupação. Frei Vicente do Salvador, por sua vez, reclama da fraca penetração territorial usando a expressão que se tornou famosa, segundo a qual os “portugueses, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos” (Salvador, 1982:59). Mais de um século depois, Frei Gaspar da Madre de Deus perde capítulos inteiros discutindo a importância da fundação de São Vicente por Martim Afonso de Sousa e aborda diretamente a problemática apontada por Frei Vicente do Salvador da questão da concentração dos núcleos urbanos na costa, com uma muito clara visão de conjunto, afirmando que era uma questão elementar de segurança, uma vez que a ida para o interior implicava o confronto com o gentio, e de estratégia mercantil, para garantir o escoamento rápido dos produtos. Afirma que “foram estes os motivos de antepor a povoação da costa à do sertão; e porque [o rei] também previu que nunca ou muito tarde se havia de povoar bem a marinha, repartindo-se os colonos, dificultou a entrada do campo, reservando-a para o tempo futuro, quando estivesse cheia e bem cultivada a terra mais vizinha aos portos” (Holanda, 2000:96). Mas é Aires de Casal quem apresenta o Brasil, em 1817, como um território coeso e completo, desenhado pelas suas vilas e cidades.

Ali o território português na América foi pela primeira vez descrito no seu conjunto, abarcando todas as províncias, inclusive a Cisplatina (hoje o Uruguai) e Caiena, então incorporadas à coroa. O território é apresentado em termos físicos, mas tendo a história como unificador, desde o descobrimento até a efetiva constituição do reino do Brasil, quando D. João VI o elevou a esta categoria. Cada região é descrita identificando-se a sua formação e colonização. Todas pertencem ao reino e o reino reflete-se nelas, nos seus atributos naturais, nas suas produções e nas suas povoações. Na dedicatória ao rei, o autor reafirma esta relação: “a descrição geográfica do vasto reino que a Providência confiou a V. R. Majestade na América é o assunto da obra que respeitosamente ofereço a V. R. Majestade, como Sua, por muitos títulos” (Casal, 1976:15).

A obra de Aires de Casal pode ser lida como o corolário do processo de construção espacial de que o Brasil é o resultado. O texto apresenta, literalmente, a história daquele espaço, e apresenta o Brasil como uma unidade destacada do todo. É o reino que a providência confiou a Portugal na América. É a parte que lhe coube na partilha do continente, implícita desde Tordesilhas. Este aspeto é importante para introduzir uma outra questão que também tem estado implícita neste texto. Como dissemos, o título e o objetivo do presente volume é apresentar o património de origem portuguesa na América do Sul. No entanto, desde a segunda linha que aqui se tem falado desassombradamente do Brasil. E assim se faz porque, em boa verdade, o locus territorial do património urbanístico e arquitetónico de origem portuguesa na América do Sul é, em si, o Brasil. Com efeito, esta é uma relação recíproca. O Brasil, como território, é o resultado do processo histórico de construção espacial que se foi concretizando com a materialidade das suas cidades e arquitetura(s).

Mas, tal como o descobrimento não se cumpriu em 1500, do mesmo modo a unidade territorial do Brasil também foi, naturalmente, fruto de um processo. Creio, no entanto, que se pode afirmar que esta unidade foi desde sempre desejada. Pode dizer-se, aliás, que o Brasil, como entidade política autónoma contemporânea, constitui a prova inequívoca do que esta unidade territorial representa, sobretudo quando o comparamos com o quadro de todas as outras nações da América do Sul que se formaram a partir dos territórios da coroa espanhola. O Brasil tem o mais vasto território contínuo da América do Sul e quase todo ele corresponde ao que foi, ou pretendeu ser, em determinado momento, a “América Portuguesa”.

Quase todo, porque o desejo do todo pretendia abarcar do Amazonas ao Prata, incluindo a Colónia do Sacramento, que, na altura em que Aires de Casal escreveu a sua obra, tinha sido novamente incorporada por D. João VI e voltaria a perder-se, em 1828, seis anos depois da independência do Brasil. Mais adiante regressaremos a esta cidade-fortaleza e ao importantíssimo papel que ela desempenhou no processo de formação territorial da América Portuguesa. Importa agora apenas chamar a atenção para o lugar especial que a Colónia do Sacramento ocupa na construção do que poderíamos apelidar de imaginário do território. Mesmo como perda ela é a exceção que confirma a regra do desejo da unidade. Assim é que, por isso, e descartando qualquer outra leitura ideológica, incluímos a Colónia do Sacramento na lista das cidades do Sul da América Portuguesa, juntamente com todas as outras que hoje fazem parte do Brasil. Tendo sido tantas vezes perdida e reconquistada, é interessante ver os vestígios materiais da presença portuguesa inseridos no conjunto mais vasto das outras memórias da Colónia, como bem faz Ramón Gutierrez no texto que lhe dedica. Importa também esclarecer desde já que, por motivos correspondentes mas opostos, não incluímos nesta obra as missões jesuíticas dos Sete Povos das Missões, que estão classificadas como Património da Humanidade. Estas missões fazem hoje parte do território brasileiro, mas não seria historicamente correto ver nelas qualquer património de origem portuguesa, uma vez que foram fundadas pelos jesuítas espanhóis e só foram definitivamente incorporadas ao Brasil depois da independência.

Esta questão da cronologia é também importante ser abordada. Por razões facilmente dedutíveis, a independência do Brasil, em 1822, foi o marco cronológico que adotámos para a seleção do que devia, ou não, ser incluído nesta obra. É este o critério, salvo por duas exceções contemporâneas também explicáveis, o Real Gabinete Português de Leitura (1887), no Rio de Janeiro, e a Embaixada de Portugal em Brasília (1978). Naturalmente não seria correto continuar a identificar com Portugal o que a partir da independência se assumia politicamente como uma nova nação. No entanto, por tudo o que já antes dissemos é também facilmente dedutível que do ponto de vista da criação das formas e da produção material (incluindo a arquitetura e o urbanismo) a simples data da independência não representa, em si, necessariamente uma rutura. Os processos de sedimentação cultural são longos e os tempos de criação e mutação das formas artísticas obedecem a critérios vastos e complexos, que não se podem submeter exclusivamente às leituras nacionais. Não obstante, são critérios político-geográficos que têm estado na base da maior parte das leituras historiográficas sobre a arte.


Reconhecimentos e discussões: História da Arte, Arquitetura e Urbanismo

O nascimento de uma história da arte do período colonial no Brasil coincide, de certo modo, com a mesma cronologia que deu origem à criação do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional. Ao longo do século XIX e até aos primeiros anos do século XX, a visão que vigorava era que o grande marco de emancipação cultural do Brasil tinha sido a chegada da missão francesa, patrocinada por D. João VI. A transferência da corte e a vinda dos artistas franceses tinham colocado o Brasil no mundo da cultura. Antes disso o Brasil era rústico, e rústica era toda a produção realizada na colónia. A formação académica, que se mantinha de base francesa, e o discurso eclético da produção artística do final do século XIX e início do XX, contribuíam para consolidar esta visão.

Será com a Semana de Arte Moderna de 1922 que, como vimos, este quadro começa a mudar. Cabe no entanto referir que, alguns anos antes, mas inserido na mesma conjuntura que antecedeu a comemoração do centenário da independência, assiste-se a um movimento em prol da criação de um estilo nacional de arquitetura. O movimento germina em São Paulo, nos anos de 1910, com a ação do arquiteto português Ricardo Severo, que propunha uma valorização da arquitetura tradicional luso-brasileira. Nos anos de 1920 o movimento ganha força no Rio de Janeiro, sendo renomeado como estilo neo-colonial pelo seu patrono, o médico José Mariano Filho. Entre as várias atividades propostas pelo líder do movimento no Rio de Janeiro incluíram-se viagens promovidas pela Sociedade Brasileira de Belas Artes. Em 1924 Lúcio Costa integra um grupo de arquitetos que viajaram para Mariana, Diamantina, São João del-Rei e Ouro Preto, com o objetivo de estudar os edifícios destas cidades e inventariar detalhes arquitetónicos para organizar um dossier sobre a arquitetura tradicional do país. A intenção era encontrar algo em que o estilo “nacional” se pudesse fundar.

Lembremos que foi no mesmo ano de 1924 que Mário de Andrade levou os poetas modernistas para Minas, na famosa viagem de “descobrimento do Brasil”. Lúcio Costa relata que a sua leitura crítica do movimento neo-colonial começou naquela mesma viagem, em que integrou o grupo da Sociedade Brasileira de Belas Artes, e brevemente o veríamos associado ao bando dos modernistas, como um dos fundadores do SPHAN.

O escopo do movimento neo-colonial explica-se, em parte, pelas suas matrizes fundadas num historicismo figurativo e nostálgico que não foge ao quadro da cultura eclética da época. Neste sentido, o movimento não poderia verdadeiramente partilhar dos valores de modernidade que se começavam a afirmar, e pode dizer-se que, na sua essência, era genuinamente reacionário. A vinculação do movimento com uma leitura de continuidade com a tradição portuguesa acrescenta outros fatores de complexidade que não cabe discutir aqui, nem é nossa intenção abordar os valores ideológicos em causa. Mas parece, de todos os modos, importante notar que o reencontro com a arquitetura do período colonial se deu, em qualquer dos casos, nesta conjuntura de procura de raízes e de afirmação da identidade nacional.

O reencontro começou na década de 1920-30, mas a publicação sistemática e continuada de estudos teria início precisamente em 1937 com a fundação do SPHAN e a criação concomitante da sua revista. A Revista do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional, juntamente com as outras publicações do órgão, foram de facto a biblioteca fundadora da história da arte do período colonial no Brasil. No programa que abre o primeiro número, Rodrigo Melo Franco de Andrade afirmava muito claramente: “a publicação desta revista não é uma iniciativa de propaganda do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional (...). O objetivo visado aqui consiste antes de tudo em divulgar o conhecimento dos valores de arte e de história que o Brasil possui e contribuir empenhadamente para o seu estudo. (...) Sem pretensões a estampar trabalhos definitivos ou completos, uma vez que, a certos respeitos, os estudos daquela natureza se acham ainda no Brasil numa fase quase primária, esta publicação procurará corresponder ao fim a que se destina” (Revista, 1937).

É unânime a apreciação de que foi sob a égide do SPHAN que se divulgaram e produziram os principais trabalhos de investigação pioneira sobre arte e arquitetura do período colonial. Publicaram-se na revista, sobretudo nos primeiros números (1937-1947) dirigidos por Rodrigo Melo Franco de Andrade, vários textos seminais para o desenvolvimento de assuntos diversos. Podem citar-se, entre outros, Rodrigo Melo Franco de Andrade (“Contribuição para o estudo da obra do Aleijadinho”), Mário de Andrade (“a capela de Santo António”), Lúcio Costa (“a arquitetura dos jesuítas no Brasil”), Luís Saia (“o alpendre nas capelas brasileiras), Paulo Tedim Barreto (“Casas de Câmara e Cadeia, o Piauí e sua arquitetura”), Gilberto Freyre (“Casas de residência no Brasil”), Joaquim Cardoso (“notas sobre a antiga pintura religiosa em Pernambuco”), Sérgio Buarque de Holanda (“Capelas antigas de São Paulo”), Hannah Levy (“a pintura colonial no Rio de Janeiro”), D. Clemente da Silva Nigra (“Francisco Frias de Mesquita engenheiro-mor do Brasil”), Carlos Ott (“os azulejos do Convento de São Francisco da Bahia”), Artur César Ferreira Reis (“o Palácio Velho de Belém”), José Wasth Rodrigues (“a casa de moradia no Brasil antigo”) e Robert Smith (“Documentos Baianos”). Para além da revista fizeram-se também outras publicações. Uma das mais significativas foi a edição, em 1944, do livro de Afonso Arinos de Melo Franco intitulado Desenvolvimento da Civilização Material no Brasil. A publicação reunia um conjunto de conferências realizadas por Afonso Arinos, em 1941, precisamente para os técnicos do recém-formado instituto. No depoimento vivencial de Lúcio Costa, o ambiente que se vivia no SPHAN tinha um “clima universitário”. Uma universidade especial, pois boa parte dos primeiros estudos e classificações de monumentos resultou de viagens, comissionadas por Rodrigo Melo Franco de Andrade, a artistas, arquitetos e intelectuais, com quem se foi descobrindo o património do Brasil colonial: Lúcio Costa na região das Missões; Curt Niemuendaju no sertão da Bahia; Rescala no Ceará; Edgard Jacintho no sertão de Mato Grosso e Goiás, entre outros.

Entre os anos de 1940 e 1960 foi a vez dos estrangeiros descobrirem o Brasil. Três autores são fundamentais para a internacionalização dos estudos sobre a arte do período colonial no Brasil: o francês Germain Bazin, o inglês John Bury e o americano Robert Chester Smith.

Germain Bazin é o autor de L’Architecture Religieuse Baroque au Brésil, obra monumental editada em dois volumes, publicados na língua original em 1956 e 1958. Em 1965, Bazin escreveu O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, que foi editado no Brasil em 1971. Enquanto a obra de Bazin teve, logo na altura da sua edição inicial, uma importante divulgação e receção nos meios académicos do Brasil e de Portugal, os textos de John Bury permaneceram pouco conhecidos até a edição, em 1991, de uma coletânea dos seus artigos organizada por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Os seus primeiros textos sobre o Brasil datam de 1948, dois pequenos artigos sobre o Aleijadinho, publicados no Boletim Shell. Os ensaios fundamentais realizou-os nos anos 1950: “Jesuit architecture in Brazil” (1950); “estilo aleijadinho and the Churches of XVIIIth Century Brazil” (1952) e, sobretudo, “The Borrominesque Churches of Colonial Brazil” (1955).

Robert C. Smith é, dos três autores, o mais conspícuo, mas cuja obra é a mais esparsa, tanto pela diversidade de temas que o interessaram como pela edição espalhada em vários artigos. A extensa bibliografia de Smith foi recentemente compilada no catálogo editado pela Fundação Calouste Gulbenkian por ocasião de uma grande exposição em sua homenagem, realizada em 2000. Dos títulos relativos à arquitetura colonial no Brasil podem destacar-se: “The colonial architecture of Minas Gerais in Brazil” (1939), “o caráter da arquitetura colonial no nordeste” (1940), “Jesuit buildings in Brazil” (1948), “arquitetura colonial bahiana: alguns aspetos da sua história” (1951), “The seventeenth and eighteenth century architecture of Brazil” (apresentado no Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros em Washington em 1950 e publicado em 1953), Arquitetura colonial (1955) e “Arquitetura civil do período colonial” (1969). Sobre o urbanismo português no Brasil há dois textos que voltaremos a referir: “Colonial towns of Spanish and Portuguese America” (1955) e “Urbanismo colonial no Brasil” (1958). Para além destes há uma vasta lista de títulos, relativos sobretudo a Portugal, cujos temas envolvem arquitetura, azulejaria, desenho, gravura, pintura, escultura, com especial interesse na talha, mobiliário, ourivesaria e porcelana, entre outros.

Sobre o Brasil haveria ainda, segundo Rafael Moreira, um projeto frustrado: um grande livro sobre a Arquitetura Colonial Brasileira, cujo esboço são os álbuns inéditos que fazem parte do espólio de Smith e que hoje pertencem ao acervo da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. Na apresentação que faz dos álbuns e do seu conteúdo, Rafael Moreira levanta a hipótese de o projeto de Smith se ter frustrado à nascença pela concorrência dos livros de Bazin, lançados em 1956 e 1958. Ainda segundo a análise de Rafael Moreira, “é revelador da personalidade de Smith que o plano da sua obra pareça decalcado da do parisiense, porém “em negativo”: uma longa introdução sobre materiais e técnicas de construção, mas que serve a este para concluir a sobrevivência de formas indígenas e africanas e a Smith a absoluta continuidade dos modelos portugueses e europeus; e onde um se dedica em exclusivo à arquitetura religiosa o outro redu-la ao mínimo essencial, espraiando-se pelo contrário (talvez três quartos do material escrito) na arquitetura civil” (Robert C. Smith, 2000:170).

Esta basilar observação remete para dois aspetos importantes de se ter em conta. Por um lado, a particular conjuntura que colocou a arte do Brasil colonial como objeto de estudo disputado por historiadores internacionais. Por outro, as eventuais divergências de leitura.

Quanto ao primeiro aspeto, cabe seguir a análise de Hellmut Wohl, que refere o “fascínio que os intelectuais e investigadores do Estados Unidos do período após a Primeira Guerra nutriram por aquilo que, ao tempo, eram consideradas as culturas periféricas da Península Ibérica e da América Latina” (Robert C. Smith, 2000:21). A sua observação faz-se tendo em conta a visão de Hans Ulrich Gumbrecht, para quem esta identificação dos americanos do norte com a América Latina revelava uma espécie de nostalgia, lendo o mundo ibérico e latino-americano como a sobrevivência de uma ordem elementar arcaica, como espaços que, ao contrário da América, em constante mutação e desordem, tinham conservado o sentido da autenticidade. O mesmo tipo de leitura poderia caber também para explicar o interesse dos historiadores europeus, uma vez que se mantinha subjacente na historiografia da arte europeia uma visão de certo modo periférica da Península Ibérica e mais ainda das suas colónias. Há que considerar também que coincide, grosso modo, com esta cronologia, o ponto alto da reabilitação do barroco, o que terá despertado o interesse mais amplo em “descobrir” o mundo barroco da península e das suas colónias.

Quanto ao segundo aspeto, é de facto interessante observar a ênfase mais nativista da leitura de Bazin, que se revela sobretudo na exaltação da originalidade mestiça do Aleijadinho, em contraste com as leituras, quer de Smith, quer de Bury, assumidamente vinculadoras às matrizes formais da metrópole. É de Smith a afirmação categórica de que no Brasil “os portugueses conseguiram manter por cerca de trezentos anos, com um mínimo de variação, a tradição continuada da arte e da arquitetura da mãe-pátria” (Robert C. Smith, 2000:98). E a não menos enfática de Bury: “Deste apanhado fica evidente que o estudo da arte e da arquitetura do Brasil Colónia não pode ser visto de forma significativa isoladamente da metrópole portuguesa. Essa relação era tão estreita que, do ponto de vista da história da arte, o Brasil de antes da independência (1822) deve ser considerado como parte de Portugal, tanto quanto, por exemplo, o Minho”. Mas a seguir acrescenta: “e, assim como encontramos significativas expressões idiossincráticas na arte do Minho, também encontramos notáveis manifestações de individualidade artística no Brasil” (Bury, 1991:189).

Os trabalhos destes autores são abordagens pioneiras e basilares, nas quais as gerações seguintes se têm baseado para dar continuidade aos estudos. As eventuais lacunas de dados ou interpretações mais enfáticas vão sendo naturalmente discutidas. Os estudos e ações levados a cabo pelas equipas das diretorias regionais do IPHAN têm procurado atualizar, em maior ou menor grau, as pesquisas sobre os edifícios sob a sua tutela. De igual modo, várias universidades passaram a desenvolver pesquisa nas áreas de história da arte, da arquitetura e do urbanismo, mantendo programas contínuos de pós-graduação. Este facto fez crescer o número de revistas e atas de encontros e colóquios onde se divulgam parte dos trabalhos, para além da eventual edição de teses. No entanto, embora se tenham ampliado consideravelmente os estudos sobre a arte e arquitetura do período colonial, a verdade é que as publicações ainda não são muitas e, naturalmente, muito continua por fazer e saber. Nos últimos anos assiste-se a um crescimento de edições na área da arte e da história que, espera-se, possa vir a mudar este quadro.

Num bosquejo rápido pelas sínteses ou monografias mais influentes editadas a partir dos anos 1950 podem citar-se, entre outros: em 1951, O Barroco e o Jesuítico na Arquitetura do Brasil e Subsídios para o Estudo da Arquitetura Religiosa em Ouro Preto, ambos de Paulo F. Santos; em 1966, Quatro séculos de arquitetura na cidade do Rio de Janeiro, também de Paulo F. Santos; em 1969, Barroco Mineiro de Lourival Gomes Machado; em 1972, Morada Paulista de Luís Saia; em 1975, a primeira edição do Atlas dos Monumentos Históricos e Artísticos do Brasil, de Augusto C. da Silva Telles, que foi muito importante pelo aspeto de divulgação nacional que obteve. No mesmo ano publicou-se o primeiro volume do Inventário de Proteção do Acervo Cultural IPAC‐BA, sob a coordenação de Paulo Ormindo de Azevedo. O Inventário tem sete volumes, que se foram editando entre 1975 e 2002. Constituem uma das obras mais importantes de levantamento patrimonial do Brasil e foram modelo de trabalho para diversas equipas. Em 1976, publica-se uma outra obra de divulgação, Arte no Brasil, de Carlos Lemos e outros; em 1978, são editados a Arquitetura dos Jesuítas no Brasil, de Lúcio Costa, e o Rio Barroco, de Clarival do Prado Valadares; em 1979, Vida e Obra de António Francisco Lisboa, O Aleijadinho, de Sylvio de Vasconcellos; em 1982, Nordeste Histórico e Monumental, de Clarival do Prado Valadares; em 1983, Benedito Lima de Toledo escreve o capítulo “Do século XVI ao início do século XIX – Maneirismo, Barroco, Rococó”, na História Geral da Arte no Brasil, editada pelo Instituto Moreira Sales; no mesmo ano de 1983, Ramón Gutierrez edita Arquitectura y Urbanismo en Iberoamerica, incluindo o Brasil. Na década de 1980 foram publicados Guias dos Bens Tombados para alguns dos Estados, como por exemplo o de São Paulo, da autoria de Nestor Goulart Reis Filho (1982). Em 1987, Maria Eliza Carrazzoni organiza o Guia dos Bens Tombados do Brasil. Ainda na década de 1980, cabe citar o papel desempenhado pela revista Barroco, editada pela Universidade de Minas Gerais. Vários importantes trabalhos de Myriam Ribeiro de Oliveira sobre o barroco e o rococó foram aí publicados. Em 1989, Murillo Marx, Myriam Ribeiro de Oliveira, Áurea Pereira da Silva e Hugo Segawa contribuem com textos sobre arte e arquitetura do Brasil para a obra Historia del Arte Colonial Sudamericano. Na década de 1990 publicam-se trabalhos sobre a arquitetura rural (Esterzilda Berenstein de Azevedo, Arquitetura do Açúcar (1990); Geraldo Gomes da Silva, Engenho e Arquitetura (1999)). Já no século XXI algumas obras de síntese/divulgação envolvendo vários autores têm sido publicadas (Património Construído: as cem mais belas edificações do Brasil (2002), Arquitetura na Formação do Brasil (2006)).

Em Portugal, só muito recentemente se tem voltado a trabalhar sobre a arte dos territórios da expansão. A presença de estudos sobre a arte do período colonial no Brasil reaparece na sequência da conjuntura dos anos 1980, em que se publicaram importantes sínteses historiográficas. Na coleção Portugal no Mundo, das Publicações Alfa (1986-1987) foi incluído um volume especial dedicado às Fortificações Portuguesas no Mundo, sob a direção de Rafael Moreira, com um capítulo específico sobre o Brasil, da autoria de Carlos Lemos. Na História da Arte Portuguesa, dirigida por Paulo Pereira para o Círculo de Leitores (1995) contempla-se apenas o território da Península, salvo o capítulo dedicado à “Cidade Portuguesa”, de Walter Rossa, que abarca a ação urbanizadora de Portugal no mundo. Na História da Expansão Portuguesa, dirigida por Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, também para o Círculo de Leitores (1998-1999) incluíram-se capítulos relativos a arte, arquitetura e urbanismo nos territórios da expansão. No volume três, Rafael Moreira escreve “Arte luso-brasileira: modelos, síntese, autonomia”. Nos mesmos anos (1998-1999), Pedro Dias publica uma História da Arte Portuguesa no Mundo em dois volumes, um dedicado ao Índico, outro ao Atlântico e, em 2004, publica História da Arte lusobrasileira – urbanização e fortificação. Muito recentemente, vieram a público, do mesmo autor, outros dois volumes sobre o Brasil (Arquitectura Civil e Religiosa / Urbanização e Fortificação), inseridos numa coleção maior intitulada Arte de Portugal no Mundo, publicada pelo jornal Público.

A maioria dos títulos que citamos diz respeito à história da arte e da arquitetura, porque a história da história do urbanismo português no Brasil conta-se de outro modo. Ainda que se possam vislumbrar na historiografia da arte do período colonial no Brasil ecos de leituras eventualmente românticas, não se pode dizer que as interpretações tenham sido contaminadas por qualquer aceção prévia, o que, de certo modo, ocorreu na interpretação do urbanismo. Evito aqui falar de preconceito, porque não me parece que tenha sido o caso, mas sim de uma conjugação de fatores que, coincidentes na mesma conjuntura, propiciaram a emergência de uma paradoxal interpretação que negava, ou pelo menos diminuía consideravelmente, o papel desempenhado pelas cidades na formação do Brasil. A negação tinha uma vertente não só quantitativa, mas também qualitativa. Isto é, julgava-se que os portugueses não só tinham feito poucas cidades (e apenas na costa) como as que fizeram eram pouco ordenadas, e quase não cidades no seu abandono formal. Esta leitura fazia-se com base numa comparação com a ação colonial espanhola da América, para onde se projetava a modernidade das teorias e ações urbanizadoras, reveladas no plano racional em quadrícula das suas cidades.

Todos sabemos que o núcleo duro desta interpretação teve como base de afirmação e divulgação os trabalhos da geração dos anos 1930, em especial o famoso parágrafo de Sérgio Buarque de Holanda no capítulo intitulado “O Semeador e o ladrilhador” incluído no seu livro Raízes do Brasil (1936). Os espanhóis são ali comparados aos ladrilhadores, construtores de cidades e os portugueses são os semeadores. “A Cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha de paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre este significativo abandono que exprime a palavra “desleixo” – palavra que o escritor Audrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como “saudade” e que, no seu entender, implica menos falta de energia do que uma íntima convicção de que “não vale a pena (...)” (Holanda, 2000:106).

Mas para entender o surgimento do texto de Sérgio Buarque de Holanda, há que referir três obras fundamentais que antecedem o Raízes do Brasil. Uma é um ensaio de 1928, intitulado Retrato do Brasil, da autoria de Paulo Prado (também um dos nomes fundamentais do modernismo e agitador da semana de 1922, sendo ao mesmo tempo um dos nomes da grande oligarquia paulista do café); outro, o famosíssimo Casa Grande e Senzala: Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal de Gilberto Freyre, publicado em 1933, e, no mesmo ano, a obra de Caio Prado Jr. Evolução Política do Brasil, a que se seguiria, em 1942, o também famoso Formação do Brasil Contemporâneo.

Estes textos formam a base da moderna historiografia brasileira. Note-se que em todos a assunção da busca da identidade é denunciada logo no título com as palavras retrato, ou raízes, ou formação (vamos rever estas palavras mais adiante, dentro da efetiva historiografia do urbanismo). O mais famoso de todos é o livro fundamental de Gilberto Freyre, que é a grande novidade. Exilado em 1930, Gilberto Freyre também tem, como Sérgio Buarque de Holanda (que viveu na Alemanha no mesmo período) um percurso que passa pelo estrangeiro. Foi aluno de antropologia com Franz Boas nos Estados Unidos da América, e adere aos seus ensinamentos, com a distinção entre raça e cultura fundada no conceito do relativismo cultural, ou seja, da cultura como resultado das especificidades históricas, geográficas e sociais de cada povo, todas em igualdade de equivalência. Freyre parte desta análise para construir o edifício da sua teoria sobre o brasileiro enquanto síntese mestiça das três raças que intervêm na colonização. A par deste, o seguinte apoio do tripé é o livro de Caio Prado Jr., que apresenta a história da formação do Brasil, com uma visão de cunho marxista, a partir dos ciclos económicos formadores do país: o ciclo do açúcar, o ciclo do ouro e o ciclo do café (de que se vivia, naquele momento, a recessão). Sustenta que toda a economia do Brasil tinha sido desde a colónia pensada numa base de “feitoria” em que o interessado estava fora do território e não dentro e que nunca o país se tinha gerido a si próprio enquanto nação produtora/consumidora, mas como simples fornecedora para os mercados europeus, criando uma menoridade económica e social e dando azo à formação de uma estrutura oligárquica/patrimonialista.

Na base das teorias de todos estes ensaios surgem quatro pilares:

1. O engenho e a estrutura familiar patriarcal.

2. A estrutura económica de extração e exploração da terra (em cada um dos ciclos).

3. A estrutura política sustentada numa base oligárquica detida pelas famílias dos grandes proprietários.

4. A estrutura social fundada na mestiçagem das três raças (mas vistas sempre tendo o branco como um dos pólos: branco com índio, geradora do mameluco de que o paulista bravio é a primeira leva; branco com negro, criando o mulato, que sairia do ambiente do engenho e depois da mineração e do café).

O que se nota aqui é que é óbvio que em todo este edifício teórico as cidades não existem. Todo o pensamento se faz a partir da valorização da estrutura social familiar que se projeta como de base exclusivamente rural. E porquê? Entre outras razões, porque a conjuntura política assim fazia parecer, e era preciso compreender e ao mesmo tempo criticar a permanência das oligarquias que continuavam no poder (e que iriam, logo a seguir, sustentar a ditadura). De certo modo, o senhor de engenho retratado no Casa Grande e Senzala é eventualmente mais parecido com um coronel dos anos 30-40 do século XX do que com o patriarca do século XVII que pretende descrever.

Mas se as razões dos brasileiros são possíveis de serem entendidas, quais seriam as razões dos portugueses para aceitarem este quadro? Embora de uma maneira aparentemente contraditória, a visão de Sérgio Buarque de Holanda acaba por ser assimilada, uma vez que ressalta uma certa originalidade portuguesa que era valorizada sobretudo no âmbito da História da Arte entendendo a arte como expressão do espírito. Esta leitura está, por exemplo, no centro da obra de Reinaldo dos Santos (L’Art Portugais (1938-52), Historia del Arte Portugués (1960) e Oito Séculos de Arte Portuguesa) que valoriza em especial os momentos da dita originalidade portuguesa, no manuelino ou no barroco joanino.

Neste sentido, a leitura telúrica de Sérgio Buarque de Holanda cabe perfeitamente e não é, pelo menos nesta altura, lida de uma maneira depreciativa, mas ao contrário. Melhor faziam os portugueses que faziam cidades não com a razão mas com o espírito, com a poesia (notar o quanto esta imagem ainda pesa...). Mais ainda, esta diferença era sobretudo marcada relativamente aos espanhóis. Enquanto os espanhóis teriam feito cidades iguais e repetitivas, diga-se, não criativas, de acordo com a lei das Índias, os portugueses tinham-nas feito originais. Naturalmente havia também a hipótese da leitura contrária – o que ficou como uma espécie de “pedra no sapato”, que fez com que a comparação básica com a qual o urbanismo colonial português da Idade Moderna sempre se posicionou foi relativamente ao espanhol e não a vários outros exemplos europeus contemporâneos, que seriam análises possíveis e legítimas e certamente esclarecedoras em vários aspetos.

Importa reafirmar que o Raízes do Brasil é claramente um ensaio de história, ou de história e sociologia, não podendo de maneira nenhuma ser lido como um texto de história do urbanismo. No entanto, o seu impacto foi tal que manteve de certo modo congelados, por vários anos, os estudos sobre o urbanismo colonial português. Para tal, também pesaram o reforço e a difusão internacional desta leitura, veiculados, por exemplo, por Robert Smith (“Colonial Towns of Spanish and Portuguese America”, 1956; “Urbanismo Colonial no Brasil”, 1958) ou Georges Kubler (Art and Architecture in Spain and Portugal and their American Dominions, 1500 to 1800, 1959).

Assim, a verdadeira história do urbanismo português da Idade Moderna iria nascer cerca de trinta anos depois de Sérgio Buarque de Holanda, com o trabalho de José-Augusto França, realizado em França como tese de doutorado em 1962 e publicado, também em França, em 1965, e em Portugal em 1966. Na verdade, a Lisboa Pombalina e o Iluminismo de José-Augusto França é não só a obra fundadora da história do urbanismo em Portugal, como também a obra de charneira da moderna historiografia da arte em Portugal.

Do ponto de vista específico da história do urbanismo as eventuais exceções antes disso são, no Brasil, os trabalhos de Aroldo de Azevedo, que era geógrafo de formação e que fez estudos, entre os quais o “Vilas e Cidades do Brasil Colonial” (1956) onde é visível a influência do magistério de Jaime Cortesão no Brasil, que era o grande elo entre a historiografia portuguesa e brasileira nos anos 1940-1950. Em 1959, Tito Lívio Ferreira e Manuel Rodrigues Ferreira incluem na sua História da Civilização Brasileira um capítulo intitulado “Urbanismo no Brasil Província”, em que citam cartas régias de fundação de vilas e reavaliam as leituras negadoras do urbanismo colonial. Estes documentos tinham sido publicados pela primeira vez em 1938, na Revista do Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional, em artigo de Paulo Tedim Barreto intitulado “O Piauí e a sua arquitetura”.

Em Portugal, cabe falar da publicação, em 1956, de uma obra fundamental que é o Ensaio de Iconografia das Cidades Portuguesas do Ultramar de Luís da Silveira e o famoso e polémico artigo de Mário Tavares Chicó “A Cidade ideal do Renascimento e as Cidades Portuguesas da Índia”. Ambas são as primeiras reações, ainda que tímidas, ao quadro geral de inexistência urbanizadora que era genericamente lido na linha de Sérgio Buarque de Holanda. Em especial, o texto de Mário Chicó, ainda que ingenuamente, dá tom da desconstrução possível apontando o caminho de ligação com estudos de engenharia militar.

Cerca de dez anos depois do texto dos Ferreiras, que provavelmente não teve a difusão necessária, e cerca de trinta anos depois do Raízes do Brasil, vai surgir um novo texto de reflexão sobre as cidades no Brasil, e não é à toa que tem o título de “Formação de Cidades no Brasil Colonial” (inserindo-se na genealogia das formações de Freyre e Caio Prado) que é o estudo que Paulo Santos faz para o V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, que se realizou em Coimbra em 1968. Tomando alguns dos exemplos e documentos usados por Manuel Rodrigues Ferreira, Paulo Santos faz uma espécie de tentativa de conciliação entre a versão tradicional de Sérgio Buarque de Holanda e uma revisão desta, apresentando um quadro de classificação formal das cidades e admitindo que algumas tinham sido planeadas, enquanto outras não. É evidente a importância para Paulo Santos do trabalho de recolha iconográfica de Luís da Silveira (1956), assim como o texto de Chicó sobre as cidades da Índia do mesmo ano. Mas o que também é evidente é que a bibliografia que tratava de Espanha como conjunto é a que serve de base a uma relação com Portugal. A grande fonte metodológica de interpretação é em especial o Resumen Historico del Urbanismo en España (1954) de Torres Balbas e Chueca Goitia.

No mesmo ano de 1968 foi publicado o trabalho de Nestor Goulart Reis Filho, intitulado Contribuição ao Estudo da Evolução Urbana do Brasil 1500-1720. A obra de Nestor é completamente diferente da de Paulo Santos. A abordagem procura ver os elementos sociais e económicos que dão origem à cidade e, sobretudo, enfrenta diretamente o paradigma da negação, afirmando categoricamente a importância da formação urbana do Brasil. Segundo ele próprio explica nas notas metodológicas, a teoria de Weber serve-lhe de âncora mas não de modelo analítico fechado. Daí que prescinda do uso do conceito de cidade (que Weber define a partir do estamento burguês que sustenta as suas formas de produção e consumo) para utilizar o conceito de urbanização, procurando ver a formação das cidades a par do processo social e, sobretudo, vendo não na escala de cada núcleo urbano em si, mas na formação de um sistema urbano. Esta interpretação permitia de facto ultrapassar a negação do urbano que a geração anterior tinha assumido. Eles viam o Brasil como retaguarda rural da Europa (como mero fornecedor de produtos e não consumidor) e neste sentido não havia núcleos urbanos verdadeiros (pois não havia economia urbana). Reis Filho rompe esta leitura redutora e defende a existência inequívoca de uma política urbanizadora, para a qual convergem os fatores económicos e as intenções do colonizador. Apresenta as fases desta cronologia com um primeiro momento em que o papel dos donatários é fundamental na criação dos núcleos urbanos e, depois do Governo Geral, em 1549, a ação direta da coroa. É aqui que surge a distinção entre as vilas dos donatários e as cidades do rei, que é um dos dados fundamentais da sua análise. Segue então apresentando o terceiro momento, sobretudo a partir da segunda metade do século XVII, em que a coroa passa a responsabilizar-se não apenas pelas cidades, ou seja pelos núcleos principais, mas pela criação e expansão da rede urbana “chamando a si as inúmeras responsabilidades da urbanização” (Reis Filho, 2000:71) a que se associa a amplificação dos quadros técnicos, que Reis Filho identifica com os engenheiros militares. O livro inclui uma tabela cronológica da fundação de vilas e cidades que vai desde o descobrimento até 1720, quando afirma que o sistema estava maduro e passou a ser ainda mais gerido pela coroa.

No final da década de 1970, é editado, nos Estados Unidos da América, o trabalho de Roberta Marx Delson, New Towns for Colonial Brazil (1979) que levou a cabo a análise pioneira do urbanismo pombalino no Brasil e a quem coube o difícil trabalho de desmontar perante o público americano o “mito da cidade brasileira sem planificação” (Delson, 1997:1).

De volta a Portugal, nos anos 1980, o trabalho de José Eduardo Horta Correia, Vila Real de Santo António. Urbanismo e Poder na Política Pombalina (1984), vem finalmente conectar as bibliografias portuguesa e brasileira de história do urbanismo. Por um lado, dá continuidade ao estudo de José Augusto França, apresentado o que pode ser identificado como a obra síntese do dito urbanismo pombalino. Por outro lado, vincula quer esta obra, quer a própria reconstrução de Lisboa que lhe antecede, ao longo processo de aprendizagem e realização proporcionado pela ação urbanizadora da expansão. Cria então o conceito de “Escola Portuguesa de Arquitetura e Urbanismo” que tem sido operativo para vários estudos.

Este quadro bibliográfico, quer relativo à arquitetura, quer ao urbanismo, ainda que dinamizado nos últimos tempos, está longe de representar uma situação confortável em termos de conhecimentos. Hoje apenas sabemos mais o quão pouco sabemos e o muito que ainda nos falta estudar. E este aspeto é fundamental para apresentar, precisamente, os objetivos desta obra. Dizíamos antes que a intenção do projeto como um todo é identificar, na medida do possível e até onde os nossos conhecimentos atuais alcançam, o Património de Origem Portuguesa no Mundo: Arquitetura e Urbanismo e, no caso deste volume, o Património de Origem Portuguesa na América do Sul. Cabe reafirmar que se trata efetivamente de ir até onde os nossos conhecimentos atuais alcançam. Neste sentido, é de inteira justiça admitir, por princípio, que o que se vai ler aqui não seja, em si, novidade. Não é este o propósito. Mas, à falta relativa de novidade das informações sobre cada item, contrapõe-se a novidade da recolha sistematizada a esta escala geográfica e, em última instância, a possibilidade de leitura cruzada dos vários elementos justapostos. O que cabe também para a hipótese de o fazer não apenas entre as cidades e os edifícios incluídos neste volume, mas para o conjunto dos três volumes, colocando em paralelo, de facto, uma ação de alcance universal. Este é, talvez, o mérito fundamental do projeto. E neste sentido é muito interessante pensar que a soma destes três volumes nos dará a leitura de um grande conjunto, onde o denominador comum e historicamente inquestionável da presença e ação dos portugueses possa ser visto na sua enorme complexidade e riqueza. Porque, a despeito da identidade transversal, a diversidade é também evidente. E uma coisa não contradiz a outra, muito pelo contrário. Talvez possamos ver diversas linhas de conjugação que, tendo a mesma base, digamos, redundem em formas mais ou menos relacionadas, nos vários pontos da rede, nas suas diversas dinâmicas e tempos.


Enquadramentos e critérios: tipologias e geografias

Foi pedido a cada um dos colaboradores do projeto que elaborasse textos (não fichas) sobre cada um dos elementos selecionados. Os artigos deveriam sintetizar o estado atual de conhecimentos sobre os sítios e/ou monumentos indicados, fornecendo as informações necessárias para se poder compreender o papel histórico que desempenharam nas áreas em que estão, ou estiveram, situados e o seu valor patrimonial intrínseco. A escolha dos textos como veículo da informação reforça um dado significativo do projeto, que é o privilégio assumidamente dado ao conceito histórico. Mais do que descrever as características formais de edifícios ou cidades, a intenção era apresentá-los, na sua materialidade sim, mas também na sua história, contextualizando a sua efetiva presença nos locais e o papel que desempenharam e desempenham.

As intenções são naturalmente as melhores, mas há que assumir os riscos implícitos. O primeiro, e mais evidente, é o da própria obsolescência da informação. Considerando a cronologia fechada do projeto, há menos hipóteses de ainda se virem a descobrir mais elementos a incluir na nossa lista. Mas há sempre hipóteses de se encontrarem novas informações, de se esclarecerem lacunas, de se corrigirem dados, e todas essas hipóteses são muito bem-vindas. Há que reconhecer esta “deficiência” intrínseca com humildade, sabendo que cada obra contribui, no seu tempo, para o conhecimento, com o conhecimento do seu tempo.

Muito especificamente aos que concordaram em trabalhar neste volume, a quem desde já faço um extensivo agradecimento pelo excelente trabalho que fizeram, coube uma tarefa nada fácil. Em primeiro lugar porque, como já se disse, lidamos genericamente com uma bibliografia que ainda está em construção e, no fundo, ainda sabemos pouco. Faltam-nos datas, autores e encomendadores dos edifícios, mas temo-los a eles próprios como documentos. Mas para além disso, uma das maiores dificuldades terá sido, certamente, redigir os tão breves artigos que lhes pedi. Com efeito, a extensa lista dos bens já classificados do ponto de vista patrimonial no Brasil obrigou a que os textos relativos a cada um dos monumentos fossem necessariamente curtos. O que, por sua vez, obrigou os autores a um grande esforço de síntese, que nem sempre é fácil. Cabe esclarecer que, mesmo tendo em conta que a apresentação de cada um dos elementos teria que ser breve, não me parece que se poderia ter tomado outra opção. Dado que o limite físico de páginas de um volume não é elástico, para aumentar a informação sobre determinados edifícios ou sítios teria sido necessário retirar de todo a informação sobre outros, o que, a nosso ver, seria uma perda maior, pois a intenção não era fazer uma seleção dos mais belos monumentos, ou dos melhor preservados ou mais significativos, mas apresentar, na medida do possível, o seu conjunto. Tal não significa que se tenha tido de sacrificar os critérios relativos ao seu valor patrimonial apresentando-os tão-somente por serem remanescentes do período colonial. Não, de todo. Como já se disse antes, a relação de cidades e edifícios que constitui o índice deste volume foi feita tendo em conta um já considerável património de pesquisas e, sobretudo, um importante trabalho despendido na sua preservação. Todos, ou quase todos, estão classificados ou a nível federal, ou estadual, ou municipal. E os que não estão, arrisco-me a dizer que deveriam.

Naturalmente, tenho pena que os artigos não possam ser maiores, mas a verdade é que devo admitir que a dimensão quer numérica, quer qualitativa do conjunto é, em si, um dado relevante. Não que isso nos devesse surpreender. As cidades e edifícios aqui apresentados são evidências materiais de uma presença continuada por trezentos anos. Uma presença que se afirmou no espaço precisamente por estes elementos materiais. Assim, este número, que é relativamente grande, é também relativamente pequeno, pois representa uma seleção. Uma seleção inicialmente feita pela história e pelo tempo, posto que outros edifícios que terão convivido com estes não sobreviveram; e, depois desta, a seleção dos critérios da projeção da memória, que elegeu estes e não outros.

Explicada a escolha, cabe explicar a ordem da apresentação. Como sabemos, este património edificado não se encontra distribuído no território de maneira uniforme. Porque o alcance do domínio efetivo deste mesmo território foi processual. Porque as regiões alcançadas, em épocas e conjunturas diferentes, têm elas próprias diversidades de cunho geográfico que obrigaram a estratégias específicas de consolidação do domínio. É por isso evidente a desproporção entre a enorme quantidade de sítios e monumentos a referenciar no litoral e no centro mineiro e o relativo vazio na Amazónia e interior oeste. Essa desigualdade era realidade no período colonial e de certo modo ainda o é hoje, espelhando a diversidade socioeconómica das regiões do Brasil. Apesar disso, quando se pretende olhar o conjunto, é possível ver que, na base, as metodologias usadas mantêm grande unidade em todo o território. Salvaguardando os diferentes investimentos em termos financeiros e fazendo, por exemplo, leituras mais cronológicas que territoriais, esta unidade é ainda mais visível, sobretudo nas tipologias arquitetónicas mais elementares e inquestionavelmente nos assentamentos urbanos.

E foi pela história que se retornou à geografia, assumindo naturalmente a sua indestrinçável relação, sobretudo no caso da colonização da América Portuguesa. Neste sentido, ordenaram-se as sub-áreas seguindo um critério que procura conciliar os dados do processo histórico e, ao mesmo tempo, a leitura geográfica do território. Assim, a primeira sub-área identifica-se como A Costa, indicando que se trata da região Este-Nordeste; a seguir O Sul, que corresponde ao Sudeste-Sul; depois O Sertão, que abarca o Centro-Oeste, e por fim A Selva, incluindo o Norte. Cada um destes nomes tem a intenção óbvia de referir uma identidade geográfica que tem efetivo suporte no processo de construção territorial. Começou-se a ocupação pela costa, avançou-se para o sul, depois adentrou-se o sertão e, finalmente, consolidou-se o domínio da selva amazónica.

Cada uma destas áreas corresponde, de certo modo, a tempos diferenciados de ação e cada uma delas tem especificidades do ponto de vista do seu património edificado, embora, como já se disse, não se possa com isso negar a unidade relativa do conjunto de que falávamos. Estes aspetos serão sublinhados nos textos de apresentação de cada sub-área. No entanto, importa desde já referir que o objetivo destas breves apresentações não é fazer uma síntese das informações que se poderão ler nos textos específicos que se lhe seguem. Tal não seria de todo possível, nem caberia nas poucas páginas para isto destinadas. Também não poderia ser nem uma história resumida da colonização da América Portuguesa, nem mesmo uma breve história da arte colonial no Brasil. A intenção é, tão-somente, procurar apresentar algumas linhas de continuidades que se possam observar entre os elementos de cada região, ou ainda entre os que sejam comuns a mais de uma. Neste sentido, as grandes tipologias (arquitetura militar, arquitetura religiosa e arquitetura civil) serão os fios condutores do discurso dos textos de apresentação.

Dentro de cada uma das sub-áreas, a ordenação é feita por ordem alfabética dos municípios. Trata-se do critério estabelecido para toda a coleção. No caso deste volume, pareceu necessário identificar, junto aos municípios, os atuais Estados brasileiros a que pertencem. Quer-se com isso permitir uma mais rápida localização geográfica de cada núcleo urbano, tendo em conta as grandes dimensões de cada uma das sub-áreas.

Em cada município, a seguir ao enquadramento histórico e urbanístico, seguem-se os textos relativos aos monumentos selecionados, que estão ordenados segundo as respetivas tipologias: arquitetura militar, arquitetura religiosa, equipamentos e infraestruturas, habitação e arquitetura rural. Em cada tipologia listaram-se os edifícios em ordem cronológica, procurando que na leitura de conjunto da notícia sobre o município se possa vislumbrar a sucessão da sua construção. É importante reafirmar que a identificação do município pretende ser o fio condutor da leitura, fazendo referência ao suporte territorial concreto onde se construíram os edifícios e que o seu conjunto materializa as cidades. O objetivo não é isolar monumentos. No entanto, em alguns casos, quando pareceu pertinente, os artigos referem-se diretamente aos edifícios selecionados nas suas respetivas tipologias, sem o texto de enquadramento urbano.

Dizíamos antes que a intenção primeira deste projeto editorial é fornecer informação correta, atualizada e sistematizada sobre um vasto conjunto de cidades e edifícios que representam, na sua materialidade, a evocação de uma presença. Uma presença cultural de Portugal no mundo e, reciprocamente, do mundo em Portugal. Esta relação é sempre recíproca e é a pertinência da memória comum que nos une a todos nesta tarefa. Cabe-me, por isso, agradecer, muito especialmente, ao Professor Doutor José Mattoso, à Professora Doutora Mafalda Soares da Cunha e à Fundação Calouste Gulbenkian a confiança em mim depositada para coordenar este volume. Do mesmo modo, e com igual gosto, agradeço a todos os colaboradores que com os seus artigos redigiram, de facto, este livro.

Pode dizer-se que o fim do descobrimento histórico do Brasil por Portugal, implicou o autodescobrimento do Brasil pelos brasileiros. Esperemos que o verso de Drummond possa ser lido de maneira ainda mais universal. Esperemos que este livro possa ajudar: “Precisamos descobrir o Brasil!”.

Renata Malcher de Araujo

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