A Convenção acerca da proteção do património cultural da Humanidade, assinada em 1972 por um grande número de países, por iniciativa da UNESCO, teve uma influência decisiva sobre as concepções dos valores materiais que simboliza e preserva, e das responsabilidades inerentes à sua titularidade, ao seu uso e à sua fruição. A partir dessa data, a UNESCO estabeleceu uma lista de monumentos e de lugares culturais que considerou como constituintes do património mundial, e procurou incentivar de várias maneiras a sua proteção. A lista foi aumentando e continua em aberto. Tendo em conta os seus efeitos práticos, a UNESCO decidiu alargar o conceito de Património Mundial às paisagens naturais mais invulgares, que devem, por isso, ser objeto de cuidados especiais. Mais tarde, estendeu a sua preocupação às manifestações da cultura imaterial. Nesse sentido, promoveu a redação de uma recomendação para a salvaguarda da cultura tradicional e do folclore (1999), e depois a assinatura por vários países de uma Convenção para a salvaguarda do património cultural imaterial (2003).
Entretanto, em 2001, tinha conseguido que 185 dos 193 países pertencentes à Organização assinassem uma Declaração sobre a diversidade cultural, a qual consagrava o princípio de que a Humanidade deve proteger todas as culturas existentes na atualidade, mesmo as culturas minoritárias ou ameaçadas de extinção. O acordo de tão grande número de países significa que existe um consenso universal acerca do prejuízo que para a sociedade constitui tanto o desaparecimento de qualquer cultura como a uniformização cultural e, consequentemente, a necessidade de combater ambas as eventualidades de todas as formas possíveis.
A doutrina subjacente a estas ações da UNESCO, consignada na referida Declaração, repousa sobre o princípio de que a diversidade cultural é “uma fonte de trocas, de inovação e de criatividade, tal como a biodiversidade na ordem da vida”.Deve, pois, ser defendida como património comum da humanidade. Ao facto evidente da diversidade cultural deve corresponder a valorização do pluralismo cultural, propício às trocas culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública. Considera, pois, o “encontro de culturas” de uma forma positiva. Com efeito, o inegável e sempre efetivo contacto entre as culturas desenvolvidas pelos diferentes povos do mundo foi um dos principais fatores que determinaram a sua evolução através dos séculos. Processou-se de formas muito diversas. Se levou, historicamente falando, ao desaparecimento de muitas, também não deixou de fortalecer outras, e de inspirar a sua adaptação a novas condições de vida. O encontro de culturas, condicionado, em épocas recuadas, pela compartimentação territorial, pelo isolamento civilizacional e pelas dificuldades de comunicação, propiciava a acentuação dos fenómenos identitários, de coesão interna e de rejeição de culturas alheias; mas raramente impediu a sua evolução.
Os contactos com a África e o Oriente iniciados pelos portugueses nos séculos XV e XVI desencadearam uma alteração do sistema de compartimentação territorial anteriormente dominante, não só por ocasionarem novos encontros de culturas, mas por darem início a um movimento progressivo de domínio do Ocidente sobre o resto do globo. Verificou-se então a transferência constante de bens materiais em benefício da Europa, e, desde meados do século XIX, o consequente desenvolvimento e concentração do capitalismo na mesma região e na América do Norte, e o domínio tecnológico do Ocidente sobre todo o mundo. As desigualdades e injustiças daí decorrentes não devem, no entanto, projetar-se negativamente sobre o conceito ambivalente do “encontro”, nem inspirar formas de proteção baseadas num isolamento artificial. Com efeito, o isolamento cultural dominante até ao século XVI não impediu nunca a troca de influências. Em certos casos, deram-se mesmo à escala continental, como aconteceu, por exemplo, na expansão do Budismo. No Ocidente também se verificaram fenómenos do mesmo género. Sirva de exemplo a recepção da cultura intelectual e artística grega pelo mundo romano, ou da cultura eslava pelo mundo bizantino, ou da filosofia aristotélica pelas universidades medievais europeias por intermédio dos árabes. Outros fenómenos menos abrangentes são constantemente estudados pelos especialistas como, por exemplo, a possível inspiração das cantigas dos trovadores pelas carjas (composições poéticas) moçárabes ou a imensa contribuição dos conhecimentos científicos árabes para o desenvolvimento da ciência na Europa medieval. Mas podem também lembrar-se contactos de sentido negativo, como as violências suscitadas pela intolerância religiosa, os genocídios motivados por rivalidades étnicas, a inferiorização de povos vencidos e a sua redução a situações de intolerável escravatura. Não é possível negar os benefícios nem os malefícios trazidos por estes factos típicos do encontro de culturas. Os conflitos a que deu origem fazem do seu estudo uma questão sensível; deve ser abordado frontalmente, sem preconceitos, de forma isenta e sem atribuir aos povos atuais responsabilidades por atos passados. Este capítulo tão importante para o conhecimento da história da Humanidade deve ser estudado de forma a evitar erros idênticos àqueles que outrora foram cometidos em nome de intolerâncias destruidoras.
Com efeito, um dos princípios fundamentais a ter em conta é o da exclusão dos juízos de valor acerca dos factos do passado, como é também de regra para a investigação histórica em geral. O seu esquecimento prejudicou os estudos sobre o encontro de culturas iniciado pelos portugueses nos séculos XV e XVI. O facto de se considerar este como o ponto de partida para o imperialismo colonial europeu que, no século XIX, implicou a inferiorização económica, política e cultural dos povos da Ásia, da América e da África, envolveu-o no mesmo juízo negativo que em meados do século passado se generalizou em apoio dos movimentos anti-coloniais, e que inspirou, por exemplo, várias reações internacionais de carácter negativo durante as comemorações do Centenário dos Descobrimentos Portugueses em 1998, numa época em que já nada restava do assim chamado “Império Colonial Português”. De facto, os movimentos independentistas asiáticos e africanos de meados do século XX adotaram geralmente ideologias políticas anti-ocidentais. Os recentes conflitos verificados no Próximo Oriente têm agravado ainda mais os preconceitos resultantes do desconhecimento de culturas alheias. Mas a evidência das suas consequências destruidoras leva também a esperançosas iniciativas de diálogo. Torna-se cada vez mais evidente que o conhecimento objectivo das culturas alheias é da maior importância para a convivência pacífica entre os povos.
Depois de um período em que o anti-colonialismo dominava a opinião pública, mesmo a dos antigos países colonizadores, foi-se matizando a atitude dos responsáveis pelas instituições de cultura e o interesse comum pelos vestígios deixados fora da Europa pelos imperialismos ocidentais. Verificou-se que o contacto entre os povos suscitou muitas vezes experiências originais, novas formas arquitetónicas, novos padrões decorativos, novos temas literários, alterações linguísticas mais expressivas, invenções técnicas mais eficazes, e que tudo isso revertia, ora para a criatividade cultural dos países colonizadores, ora para o enriquecimento cultural e a formação de elites cultas nos países dominados, e inspirava, até, contactos mais fecundos e partilhas multilaterais. A pouco e pouco, foram aparecendo os institutos e centros de estudo que admitiam a investigação sobre estes temas, e depois os que a elegiam como objetivo específico das suas atividades. A crispação pós-colonial foi lentamente dando lugar a um entendimento menos exclusivo do encontro de culturas, a um cuidado cada vez maior em preservar os indícios da partilha de valores que nesse vasto encontro se verificou, e em estudar os fenómenos a que ela deu lugar desde o fim da Idade Média. Um dos exemplos de tal mudança de atitude foi a criação em 1998 da rede do Comité Científico Internacional do ICOMOS (InternationalCouncilonMonumentsand Sites), e, dentro dela, do Comité para a Partilha da Herança Colonial. Este Comité mostrou, desde a sua criação, os riscos a que estão sujeitos os produtos da herança colonial, muitos deles do mais elevado significado, o interesse que por eles devem ter, tanto os responsáveis dos países tornados independentes, como os dos antigos colonizadores, e chamou a atenção para a necessidade de unir esforços no sentido de preservar, de estudar e de atribuir o devido valor aos vestígios de uma grande quantidade de bens que demonstram alguns dos aspectos mais inovadores da cultura mundial.
É preciso, portanto, evitar confundir as épocas e as situações, e não projetar sobre o passado fenómenos da nossa época. O estudo do encontro de culturas também não deve deixar-se influenciar por formas especiais de convivência ou de conflitos étnicos atuais cujos efeitos ultrapassam a simples confrontação de ideias e de práticas sociais. É o que acontece, por exemplo, com a formação de comunidades étnicas em países desenvolvidos, no meio de grandes massas de imigrantes não-europeus. Os conflitos exacerbados pela convivência entre comunidades de culturas rivais deram origem a estudos e projetos inspirados pelo multiculturalismo – uns para o incentivar, outros para o condenar –, e em sentido oposto, ao recrudescimento de práticas e ideologias racistas. Todavia, o encontro de culturas não deve depender da consideração de situações de conflito cuja solução depende mais de razões políticas do que de qualquer outro fator.
Por outro lado, o respeito pelas culturas minoritárias e as estratégias necessárias à sua defesa também não se devem confundir com uma utópica musealização de fenómenos arcaicos. Pode-se e deve-se criar uma “memória” tão objectiva quanto possível de culturas extintas ou em vias de extinção. Não se devem promover formas de congelamento artificial, mas incentivar os contactos benéficos, construtivos e inovadores. As culturas, tal como sucede com os organismos vivos, só podem subsistir por meio de uma constante renovação e da adaptação a novas condições de vida. Para que esta se dê, é necessária a manutenção da diversidade cultural, princípio que a UNESCO pretendeu, justamente, defender por meio da Declaração de 2001.
É neste contexto que se deve entender a contribuição que a Fundação Calouste Gulbenkian pretendeu dar ao estudo do encontro de culturas e, por conseguinte, da diversidade cultural, promovendo a listagem dos vestígios arquitetónicos e urbanísticos de origem portuguesa existentes no mundo não-europeu. Este projeto situava-se na continuidade de um apreciável conjunto de ações de recuperação material em edifícios e monumentos de todo o mundo, entre as quais se contam o Forte do Príncipe da Beira, em Rondónia (Brasil), a Casa de Nacarelo, na Colónia do Sacramento (Uruguai), a Fortaleza de Arzila (Marrocos), a catedral portuguesa de Safim (Marrocos), o Forte de São João Batista de Ajudá (Benim), o Forte de Jesus, em Mombaça (Quénia), o Forte de Quíloa (Tanzânia), as fortalezas de Ormuz e Qeshm (Irão), a Igreja do Rosário, em Daca (Bangladesh), a Feitoria Portuguesa de Ayutthaya (Tailândia) ou a Igreja de São Paulo, em Malaca (Malásia), para além de outras intervenções no sentido de preservar bens culturais de outro género, construindo para isso museus como os de Velha Goa e o de Cochim, ou promovendo a inventariação e classificação de documentos de arquivo (também em Cochim). Todavia, estas ações, decididas caso a caso, vieram a recomendar, até pela sua própria repercussão, uma avaliação prévia da importância relativa dos edifícios em causa, de forma a justificar a prioridade concedida a eventuais novas intervenções, tendo em conta o conjunto a que pertencem.
Com efeito, é importante conhecer a extensão e a diversidade desses vestígios, e assinalar os mais importantes para, com maior cuidado, se protegerem da degradação ou de eventuais deturpações. Embora se circunscreva a um sector – o património material – resultante do encontro da cultura portuguesa com as da Ásia, América e África, as conclusões do seu estudo podem-se articular com a investigação de fenómenos análogos mas de outras áreas científicas (linguísticos, religiosos, alimentares, do vestuário, por exemplo) para os comparar entre si, e melhor conhecer toda a dinâmica da criação cultural e das suas funções sociais. A escolha de um critério nacional para a definição de uma área de análise (ou seja, no nosso caso, dos monumentos e sítios de origem portuguesa) não resulta, pois, de nenhuma espécie de reivindicação de hipotéticas glórias nacionais, como seria provavelmente o caso se tivesse sido realizado antes de 1974. De facto, os vestígios deste encontro de culturas não pertencem a um só país; pertencem a toda a Humanidade. Dão testemunho da diversidade cultural e da criatividade humana. Os povos que reagiram a esse encontro atribuíram um sentido e uma função aos sinais então inventados, quer fossem inspirados pelo desejo da imitação ou da assimilação de formas alheias, quer traduzissem a sua rejeição.
O critério da origem portuguesa ajuda a definir e explicar o processo que conduziu ao nascimento de outras formas culturais não-europeias. Para atingir esse objetivo, é importante um levantamento completo, tanto dos casos de pura importação, como de casos híbridos. Este aspecto é particularmente importante no caso do Brasil, onde se desenvolveu uma arquitetura e uma escultura que não se limitaram a copiar modelos portugueses. As suas realizações foram-se autonomizando progressivamente até acabarem por conquistar uma identidade própria. Se hoje existe uma arte brasileira, não se pode esquecer de que maneira apareceu. A apreciação dos seus valores passa por uma compreensão e uma reconstituição do processo de transformação que lhe deu origem. O mesmo se pode dizer da arquitetura religiosa, das artes decorativas indo-portuguesas, ou da arquitetura militar desenvolvida pelos portugueses em territórios hoje islâmicos, ou, até certo ponto, dos ensaios modernistas realizados em Angola ou Moçambique e das soluções urbanísticas propostas pelos arquitetos do Estado Novo nas suas experiências tendentes a implantar um “regime branco” em território africano. Em todos estes exemplos, nuns de maneira mais evidente, noutros de forma mais rígida, se verificaram trocas, ensaios, experiências, adaptações. Umas vezes reproduz-se sem alterações o modelo português (ou europeu), estilizado ou não, outras fazem-se ousadas experiências, algumas das quais, hoje, infelizmente, perdidas.
A definição de uma área de estudo inspirada no critério nacional também não deve privilegiar os monumentos de prestígio nem as iniciativas oficiais. Sem esquecer a carga ideológica que inspirou muitos deles, e que implicava afirmações de superioridade, não se pode esquecer a contribuição da massa anónima de emigrantes que buscavam no exílio a subsistência ou a melhoria de condições de vida. Também não se podem ocultar as práticas de exploração do homem pelo homem, como aconteceu com a escravatura, e a sua influência na criação de sinais de sobrevivência em condições tão adversas. O encontro de culturas, em que os portugueses desempenharam um papel importante, é uma história de luz e de sombras que não deve admitir propósitos apologéticos, sejam eles religiosos, étnicos ou políticos. Um exemplo claro da aplicação deste critério ao nosso trabalho é a inclusão de um monumento como o do Forte de São João Batista de Ajudá, que foi um dos principais entrepostos do comércio da mão-de-obra escrava estabelecido no continente africano. O seu significado simbólico é muito superior ao seu valor estético. O mesmo se diga da Prisão do Tarrafal, em Cabo Verde.
O levantamento dos vestígios materiais do encontro de culturas é, pois, uma contribuição importante, quer para a reconstituição do processo que dele depende, quer para a avaliação dos seus resultados na época atual; ou seja, tanto para a história desses encontros ou desencontros, como para a compreensão das culturas nacionais que deles resultaram. Esta recolha deve, tanto quanto possível, ser sistemático, isto é, completo e categorizável. Completo, enquanto elenco de todos os casos em que se verifica uma efetiva ou provável influência portuguesa, dominante, ou mesmo secundária. Categorizável, enquanto registo de todos os casos em que ela se verifica, de forma a poder identificar e organizar conjuntos coerentes e definir a sua tipologia, condições indispensáveis à sua correta avaliação.
Uma recolha como a que a Fundação Gulbenkian promoveu e publicou não toma como modelo as listas de classificação de sítios e monumentos como números do património mundial, nem o registo igualmente classificatório de nível nacional, como os “monumentos nacionais”, entregues à salvaguarda do Instituto Português do Património Arqueológico e Arquitetónico (ou dos organismos equivalentes), nas diversas categorias previamente definidas. O objetivo deste projeto é criar um objeto de estudo, um corpus, como conjunto significativo do contexto em que os seus diversos elementos foram criados, dos sinais que os caracterizam, na sua singularidade ou na sua categorização, das alterações que sofreram, enfim, dos aspectos que justificam o seu maior ou menor valor patrimonial. O carácter sistemático que se pretende dar-lhe é também essencial para que os fenómenos detectados no plano arquitetónico e urbanístico possam ser estudados em conjugação com fenómenos de outra natureza, como os linguísticos, sociológicos, científicos ou religiosos, de forma a compreender em toda a sua complexidade os resultados do encontro de culturas promovido pela dispersão dos portugueses no mundo não-europeu.
Embora se pretendesse, portanto, constituir um levantamento sistemático de edifícios, monumentos e sítios com interesse arquitetónico e urbanístico, procurou-se evitar as enumerações exaustivas, que levariam a uma tarefa incontrolável, caso esse critério se aplicasse às últimas colónias portuguesas. De facto, o objetivo não era registar todos os vestígios de total ou parcial origem portuguesa, mas apenas proceder a um levantamento completo de sítios e monumentos já identificados como tais e que, além disso, possuíssem relevância suficiente para serem considerados vestígios com uma identidade própria. Entendiam-se marcados por “identidade própria” aqueles sítios e monumentos que, pela sua forma, valor artístico, valor funcional, sentido simbólico, dimensões, ou características técnicas, se pudessem considerar como lugares ou construções dotadas de uma certa autonomia, e acerca das quais se conheçam, ou possam vir a conhecer, referências históricas em fontes narrativas ou documentais. Excluíam-se, portanto, os vestígios de origem não identificável e as construções incaracterísticas sem qualquer valor cultural.
A recolha reuniu a maior informação possível, sobretudo a de carácter histórico e técnico, acerca dos sítios e monumentos com alguma relevância. Deu a prioridade a dados concretos (nomes, datas, acontecimentos) que permitem relacionar os sítios e edifícios selecionados com conjuntos mais vastos de informações sobre a presença portuguesa no mundo, e reconstituir o que se pode designar como “as condições de produção” desses mesmos sítios e edifícios. Todavia, pretendeu compilar apenas a informação já efetuada, sobretudo a que se encontra em publicações especializadas (ou seja, apresentar aquilo que normalmente se designa como “o estado da arte”), sem tentar realizar investigação inédita. A bibliografia apresentada no fim de cada artigo serviu para justificar as sínteses elaboradas, atribuir aos respectivos autores as informações e opiniões interpretativas já publicadas e orientar eventuais pesquisas para o aprofundamento dos mesmos temas.
Na versão impressa, o resultado final do trabalho apresentou-se como um “dicionário” de sítios e monumentos por ordem alfabética do nome do lugar onde se encontram. A este “dicionário” antepôs-se uma introdução geral para cada uma das quatro regiões consideradas, através da qual se podiamm equacionar os problemas históricos (de história geral, de história da arte, de história da arquitetura, de história urbanística, etc.) e culturais que enquadram e dão significado a cada caso, e o situam num contexto geográfico, diacrónico e civilizacional. As “entradas” classificam-se pelos topónimos atuais dos lugares em que se encontram segundo a ortografia oficial atual dos respectivos países, mas indicam-se também os nomes “antigos”, nomeadamente os usados na documentação portuguesa e na historiografia ultramarina dos séculos XVI a XIX. No caso de sítios em que existem vários edifícios ou monumentos, apresentou-se primeiro, uma notícia de conjunto, e, a seguir, as notícias acerca de cada um dos edifícios ou monumentos do mesmo sítio, de acordo com as duas tipologias funcionais (arquitetura religiosa, arquitetura militar, equipamentos e infraestruturas, habitação), por ordem também alfabética. Manteve-se o estilo da escrita de cada um dos autores, mas houve o cuidado de uniformizar a redação dos textos, segundo a norma do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Finalmente, os autores de cada uma das quatro áreas geográficas definidas nos três volumes assinalaram os principais problemas e dificuldades específicas de cada uma delas. Com efeito, a divisão efetuada por três continentes – Ásia, América e África – e uma área situada em dois deles (o Médio Oriente) decorre de condições de carácter prático. Baseia-se simultaneamente no facto de cada uma dessas áreas possuir características dominantes diferentes, embora não exclusivas, o que, por sua vez, explica a escolha dos coordenadores especializados para orientarem os trabalhos e a sua distribuição. Há uma certa lógica nesta divisão. A área islâmica engloba as primeiras construções de origem portuguesa fora do continente europeu. Dado que estes contactos foram sobretudo de carácter militar, predominam nela as fortalezas e fortificações dos séculos XV e XVI, tanto as que se implantaram em Marrocos, como no resto do mundo mediterrânico e no Golfo Pérsico.
O levantamento consagrado à Ásia recolhe o património criado em função do Estado da Índia e o que dependia, do ponto de vista religioso, do Padroado Português do Oriente, não só na própria península do Industão, mas também nos lugares e entrepostos portugueses que se criaram na sua órbita. Associou-se-lhe o património que depois viria a ter características próprias, decorrentes de uma profunda alteração das condições históricas em que se prolongou a administração portuguesa, como aconteceu em Macau e Timor. O período histórico predominante situa-se nos séculos XVI e XVII, mas circunstâncias de vária ordem (como o prolongamento do Padroado) determinaram, em áreas cada vez mais restritas, alterações substanciais que deixaram os seus traços em muitos lugares e que podem ter apagado ou escondido uma anterior influência portuguesa.
No Brasil e na Colónia do Sacramento (hoje Uruguai), aos quais se reduziu a presença portuguesa na América, a intensificação das construções nos séculos XVII e XVIII, muitas das quais reproduziam quase sem alterações os modelos metropolitanos, os fenómenos da exploração, primeiro do açúcar, depois do ouro e dos diamantes, é o quadro em que se dá a criação de comunidades inteiras de portugueses e a adoção de sistemas administrativos análogos aos da metrópole, com variantes decorrentes, quer da exploração maciça de mão-de-obra escrava, quer da guerra com holandeses e franceses, quer, ainda, da presença da corte régia até às vésperas de independência.
Enfim, na África Subsaariana, podem-se encontrar vestígios mais ou menos isolados de entrepostos e fortalezas litorâneas, criados principalmente para servirem de apoio à navegação em direção à Índia, e depois de captação da mão-de-obra escrava; mas não são eles que definem o sentido global da herança colonial portuguesa na região. A penetração para o interior é um fenómeno tardio. Só a partir do século XIX é que o território ficou marcado pela presença portuguesa, primeiro com a ocupação militar dos vales dos rios e, logo a seguir, com a implantação de estruturas coloniais destinadas a assegurarem a exploração dos recursos naturais, sobretudo de matérias-primas, como acontecia também nas outras colónias europeias do continente africano. Embora nas últimas décadas da ocupação portuguesa se verificassem algumas tentativas de criação de estruturas conducentes a um eventual “regime branco”, a guerra colonial fez gorar por completo as veleidades registadas nesse sentido. Mas os vestígios da presença portuguesa são ainda maciços e de todo o género. Sem produzir obras de valor arquitetónico equivalente ao de tantos monumentos portugueses do Oriente ou do Brasil, e ostentando a marca do por vezes excessivo controlo pelo Terreiro do Paço, nem por isso deixou de se traduzir em interessantes edificações inspiradas pelo modernismo, a artdéco, a artnouveau ou a arquitetura moderna; os governos independentes de Angola e Moçambique, por razões ideológicas, nem sempre as apreciaram devidamente.
As perturbações trazidas pela guerra colonial e pelas dificuldades de consolidação dos governos atuais levantaram alguns obstáculos à informação completa acerca das condições de criação e do estado atual de alguns edifícios e monumentos de origem portuguesa, razão pela qual foi prevista a eventualidade de vir a ser necessário atualizar algumas das informações relativas à África. Mas o mesmo acontecia também, por razões diferentes, no que respeita à Ásia. Com efeito, a perspectiva do levantamento completo exigiria o exame direto de muitos sítios onde se podem encontrar vestígios portugueses até hoje não identificados. Tal empreendimento estava, no entanto, fora dos objetivos do projeto, pois exigiria investigação inédita. Como se explicou mais acima, este projeto pretendia apenas sintetizar pesquisa já realizada.
Com efeito, numa obra deste género a recolha das informações é sempre provisória. O próprio facto de se pretender levar a cabo um inventário completo induz o aparecimento de novos dados, o alargamento da pesquisa e até a alteração dos critérios de seleção. Descobrem-se novos documentos, fazem-se intervenções arqueológicas que revelam novos dados, podem até desaparecer vestígios, edifícios e monumentos em virtude de conflitos armados, de catástrofes naturais ou de incúria na manutenção. Um “dicionário” impresso é sempre uma obra estática. Depressa se torna desactualizada, se não no conjunto, pelo menos numa proporção imprevisível dos seus pormenores. Foi por isso que os organizadores da obra intitulada Património de origem portuguesa no mundo. Arquitectura e urbanismo resolveram criar na internet um portal que recolhesse e disponibilizasse todos os materiais nela incluídos. Além de o seu conteúdo se tornar, assim, mais acessível em virtude das capacidades técnicas de acesso à informação nela registada teria a vantagem de poder ser constantemente aperfeiçoado e actualizado.
É essa a razão de ser do portal HPIP, Heritage of Portuguese Influence/ Património de Influência Portuguesa.
José Mattoso
Presidente do Conselho Editorial e Director da obra impressa