Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.
A construção da presença portuguesa no Magrebe
Parece justo dizer‐se que Portugal, de uma forma geral, e a historiografia portuguesa, em particular, têm dedicado mais atenção à história da nossa permanência em Marrocos do que aos vestígios materiais dessa presença que ainda hoje podem ser visitados. Daí que nos preocupemos menos do que devíamos com o destino desses testemunhos materiais.
Talvez isso ajude a explicar a razão pela qual, para o estudo dos portugueses em Marrocos, ainda continuamos a usar parte substancial da bibliografia produzida nas primeiras décadas do século XX. Não admira assim que a obra de Pierre de Cénival continue a ser inultrapassável; o mesmo se passa com o estudo que, mais tarde, Vitorino Magalhães Godinho dedicou à análise da situação económica e social do Norte de África atlântico. Nos últi‐ mos anos, todavia, algumas teses em colaboração com historiadores e equipas magrebinas têm ajudado a abrir alguns horizontes interessantes e promissores. É o caso, por exemplo, de um recente projeto, coordenado por Maria Augusta Lima Cruz, que reuniu investigadores de Portugal e Marrocos. Do mesmo modo, outros trabalhos mostraram que, em arquivos espa‐ nhóis e até marroquinos, há muitas fontes de grande importância, que importaria inventariar e estudar, e nos colocariam diante de novos problemas.
Como se verá ao longo dos textos, ainda é muito o trabalho que está pela frente. Em muitas das entradas deste inventário, percebem‐se as lacunas, grandes e pequenas, que ainda existem e que representam investigação e estudos a realizar. Meknès é um bom exemplo. Segundo a documentação de arquivo, no século XVIII, os portugueses que aí se encontravam em cativeiro terão formado uma comunidade organizada que ocupava um bairro – ou talvez só uma rua – da cidade. O que sabemos desta realidade? Pouco, ou nada. Os exemplos podiam multiplicar‐se; tomem‐se mais dois exemplos, em dois pontos opostos de Marrocos. Desconhecemos quase totalmente a construção de estruturas fortificadas controladas pelos portugueses na costa marroquina virada ao Mediterrâneo e mal nos apercebemos de que, na região, terá existido uma importante rede de fortes e atalaias que, no início do século XVI, obedecia ao rei de Portugal. Mas a sul, na cidade de Safim, para além da identificação de algumas das estruturas intramuros, são desconhecidas as fortalezas e quase todas as torres de atalaia que certamente serviam o sistema defensivo da cidade, uma das quais, aliás, se encon‐ tra classificada pelas autoridades marroquinas.
Esta preocupação com o património reflete, afinal, o reconhecimento da importância que, para Portugal, teve a presença no Norte de África. Note‐se que em alguns locais, dir‐se‐ia a maioria, a presença foi breve e, à primeira vista, de escasso impacto social e político. Safim, cidade da região da Duquela, que ainda apresenta um imponente conjunto de estruturas fortificadas, conheceu um curto domínio português entre 1508 e 1541; Azamor foi dirigida pelos portugueses entre os anos de 1513, quando foi conquistada pelo duque de Bragança, e 1541; nesse mesmo ano, perdeu‐se Santa Cruz do Cabo de Guer, que os portugueses controlavam desde 1505. Mogador, a atual Essaouira, esteve somente quatro anos sob domínio português entre 1506 e 1510. E Tetuão conheceu uma brevíssima presença portuguesa, com a investida de 1514.
Noutras cidades, a presença portuguesa foi um pouco mais prolongada. Alcácer Ceguer, que se encontra atualmente em ruínas, foi tomada em 1458 e abandonada em 1550; no mesmo ano, os portugueses partiram também de Arzila, que haviam conquistado em 1471. Uma das localidades em que a presença portuguesa durou mais tempo foi Ceuta, a primeira praça a ser conquistada no Norte de África (1415) e que passou à coroa espanhola em 1640. Tânger manteve também uma longa ligação a Portugal, já que foi conquistada em 1471 e abandonada quando integrou o dote de D. Catarina de Bragança por ocasião do seu casamento com o rei inglês. Finalmente, Mazagão, a que regista a mais longa presença portuguesa, pois em 1514 já conhecia as primeiras obras fortificadas de responsabilidade portuguesa, mas que o marquês de Pombal mandou abandonar em 1769, transferindo‐a para o Brasil!
Este enumerar da presença portuguesa tem importância por duas razões. A primeira pretende ajudar a perceber os motivos pelos quais o abandono de muitas das praças marroquinas se tenha concentrado num período muito específico do século XVI. O segundo permite interrogarmo‐nos sobre a desproporção entre esses períodos de domínio da coroa de Portugal, tão curtos e quase esporádicos, e o impacto, que ainda se percebe, da presença portuguesa.
Na realidade, a presença portuguesa no Norte de África compreende‐se melhor quando olhamos para um mapa político de finais do século XV. A norte, face ao reino de Fez, com o qual Portugal alternava políticas de comércio pacífico e de guerra, o reino conquistara um conjunto de praças e construíra fortalezas com o vago objetivo de uma conquista definitiva dos territórios do inimigo da fé, mas que, entretanto, ajudavam a controlar as rotas de navegação, asseguravam o acesso estratégico entre o Mediterrâneo e o Atlântico e garantiam as bases para lançar uma agressiva política de corso. Mais a sul, o reino de Marrocos, centrado em Marraquexe, era um concorrente permanente para o comércio dos produtos que entravam e saíam dos portos do Atlântico e um relativamente longínquo inimigo dos cristãos. Ao mesmo tempo, estas cidades do sul, que os portugueses também fortificaram, faziam parte de uma verdadeira estrutura de apoio à navegação ao longo da costa africana. De permeio, muitas das opções portuguesas estavam ainda condicionadas pela rivalidade com Castela, primeiro, e a Espanha, depois, sempre alimentada, como se verá, por acordos e tratados nem sempre muito claros.
O segundo aspecto reporta‐se à discussão sobre as linhas de orientação da expansão. Como se sabe, logo desde a conquista de Ceuta, a necessidade de mobilizar grandes recursos para manter esta presença no Magrebe gerara oposição e protestos. Foi a propósito desta percepção generalizada que o infante D. Pedro lançou a famosa acusação de Ceuta ser um sorvedouro de gentes e dinheiro. Com a chegada dos portugueses à Índia, tornou‐se logo evidente que a situação se agravava e o reino dificilmente se conseguia manter simultaneamente no Índico, no Brasil, em África e em Marrocos.
Cedo se instalou no reino a discussão acerca de saber se Portugal não deveria optar pela continuação na Índia e no Brasil em detrimento de Marrocos, ou, pelo contrário, deveria escolher uma presença “além‐mar” mais próxima e controlável. Foi D. João III quem deu início a uma série de consultas pelos notáveis do reino acerca do abandono de algumas praças, em especial Safim e Azamor. Estas consultas processaram‐se em dois momentos especiais: primeiro entre os anos de 1529 e 1530, tendo‐se posteriormente arrastado de 1534 a 1541.
Um dos aspectos mais interessantes das respostas relaciona‐se com o tipo de argumentos usados para justificar a continuação ou não da presença portuguesa em Marrocos. É certo que todos percebiam as ameaças que pesavam sobre as duas praças e também é verdade que todos reconheciam os grandes encargos que as fortalezas representavam. Mas muitos também lembravam as obrigações da luta contra o infiel, o dever de manter sob domínio cristão as terras conquistadas e o “desserviço” de Deus que o abandono representaria.
A necessidade de recorrer a este último argumento indiciava, por si só, que a coroa se encontrava cada vez mais comprometida com uma decisão de retirada, alternativa para onde empurrava a crise mundial que o reino sentia fortemente. Não são, todavia, completamente claras as fraturas sociais e políticas do reino a propósito desta questão. As cortes de 1562, por exemplo, votaram contra o abandono das praças de África, nem que fosse à custa do encerramento dos Estudos Gerais!
É natural que os reais motivos de saída de muitos locais de Marrocos não se possam resumir a uma simples razão, mesmo que seja evidente que a crise financeira mundial pressionasse para a retirada e fossem cada vez maiores as despesas da feitoria da Andaluzia para abastecer muitas das praças. Claro que também ajudou a consciência do monarca acerca da fragilidade dos recursos disponíveis para controlar todos os territórios. Do mesmo modo, Portugal, por todo o seu império, ia descobrindo outros recursos, menos arriscados, e, por outro lado, dava‐se conta de que ia perdendo irremediavelmente uma parte dos que tinha em tempos controlado. É o caso do mercado de escravos e das atividades de pilhagem, associadas ao corso e à pirataria, no Mediterrâneo e na costa ocidental de África, que lhe permitiram, no século XV, ser o grande mercado abastecedor da Europa.
Apesar de a decisão do abandono ter sido tomada e executada e de o próprio papa ter dado cobertura a tal decisão com a bula Licet apostolicae sedis, não se pense que se tratou de um caso arrumado. Com D. Sebastião, rodeado por uma corte que apoiava as pretensões do monarca em tomar Marrocos, voltou a questão da legitimidade e da bondade da anterior opção. Nem com o desastre de Alcácer Quibir os partidários da manutenção de Marrocos esmoreceram, embora os argumentos possam ter mudado. No início do século XVII, na última cena dos Diálogos do Soldado Prático, Diogo do Couto, pela boca de um soldado experiente, explicava aos leitores como o reino estava dividido sobre as opções a tomar. A cena abre com as seguintes palavras: “Começarei, senhores, pelas rezões que se dão para ser melhor conquistar‐se África, que a Índia” (Couto, p. 204).
E, a seguir, organiza os argumentos, no essencial comparando as vantagens e riquezas das duas regiões. Em Marrocos, começa por descrever a abundância em cereais, em “fructos e gados” e em minas ricas de metais preciosos e outros metais. Mas, depois, lembra as enormes dificuldades de conquista e a fragilidade global da situação militar, incluindo a impreparação do pessoal e a incapacidade da nobreza em evitar as perdas territoriais anteriores. Seguidamente, lança‐se na descrição das vantagens da Índia, a começar pelas especiarias, passando depois por todos os produtos de cujo comércio os portugueses tiravam proveito e os sítios em que a coroa portuguesa tinha uma presença ativa. Nesta comparação, desenvolve-se a ideia de que tal aventura não podia ter sido feita para nada. Mas, além disso, tornava‐se evidente que era na Índia que se combatia mais eficazmente o Islão e os seus interesses e a oportunidade que os portugueses tinham tido só poderia ser uma dádiva de Deus impossível de recusar. É certo que o interesse pessoal do próprio Couto nos assuntos da Índia determinava a forma dos seus argumentos; todavia, esta obra é um bom espelho do debate que teve lugar na sociedade portuguesa ao longo de todo o século XVI e se prolongou por boa parte do século seguinte.
Claro que, com o tempo e a consolidação do próprio reino de Marrocos, foi‐se perdendo a vontade e a possibilidade de regresso. Não se perderam os contactos, nem os da paz, que promoviam o comércio e a troca de embaixadas, nem os da guerra e da violência, que agora se alimentavam das trocas de cativos e das grandes cerimónias que os esperavam à chegada. Ficaram, todavia, alguns vestígios relevantes: tanto os do rico património construído que se percebe por todo o lado, como algumas ligações sociais difusas, provavelmente com origem nos portugueses que se foram estabelecendo em algumas das cidades. Talvez mais interessante é a forma descontraída como os marroquinos se foram apropriando deste património, conservando‐o e valorizando‐o.
Esta presença em Marrocos teve objetivos e desenvolvimentos distintos, em função do tempo e dos lugares. É perceptível como a lógica de ocupação das praças do Estreito, em que Portugal promoveu as primeiras conquistas fora do reino, não foi a mesma daquela outra, mais a sul, relacionada com a expansão marítima e o comércio. Elas merecem, pois, uma análise separada; esta a razão pela qual os artigos desta obra estão organizados de forma separada; primeiro os relacionados com a política de controlo do Estreito de Gibraltar, que representava, em grande medida, a ligação ao Mediterrâneo e às tradicionais políticas externas de finais da Idade Média; e, em segundo lugar, os textos relativos à costa atlântica, que são o prenúncio de um outro tipo de objetivos ligados à expansão portuguesa.
Filipe Themudo Barata
O Estreito de Gibraltar
O extremo ocidental da Península Ibérica, apertado entre as serras e o mar, não pode ser enquadrado e compreendido historicamente se for dissociado das costas fronteiras africanas. Desde a pré‐história, dos dois lados do Estreito desenvolve‐se uma mesma civilização megalítica, continuada pela Tingitânia romana e visigótica, pelo califado cordovês e depois pelos impérios almorávida e almóada. A entidade geohistórica dos dois Algarves vizinhos só nos tempos modernos, com a formação da Europa‐fortaleza, passou a ser separada pelo braço de mar que até então sempre os unira. Dos dois lados do Estreito, de Sagres a Safim, ao longo das praias e portos deste vasto golfo abrigado da nortada, conhecido por Mar das Éguas, as formas de civilização nunca foram muito diferentes. Dos tempos anteriores à romanização, além do constante e nunca interrompido intercâmbio nas fainas da pesca, outras analogias parece ter havido no povoamento, nas técnicas e saberes das zonas montanhosas do Sul peninsular e do Rif norte‐africano. Entre outras semelhanças da casa de habitação rural destacam‐se, além das mesmas formas, volumes e práticas de uso, uma mesma linguagem decorativa, uma mesma técnica construtiva, só aceitáveis no quadro de antiga e nunca interrompida simbiose cultural. São sugestivos também os paralelos tanto na morfologia ornamental da cerâmica como no entrançado e cadência geométrica da cestaria, da empreita e da tecelagem da lã e do linho. São factores e gestos profundamente enraizados e comuns aos dois lados do Estreito e que, ao contrário do que tem sido sistematicamente repetido, não são o resultado da deslocação de populações que, em 711, teriam acompanhado uns hipotéticos invasores árabes e berberes comandados por Tarique.
Sobretudo nas zonas serranas, desviadas dos pólos urbanos e, por conseguinte, sempre mais conservadoras, permanecem expressivos elementos de continuidade, resistindo à gradual aculturação veiculada primeiro pela romanização e depois pela islamização.
Ao contrário, as férteis planícies litorais com os seus portos de abrigo, pontos de convergência das vias comerciais, abrem‐se a todas as influências e pressões inovadoras. Os centros urbanos das antigas Bética, Lusitânia e Tingitânia, abandonadas e esquecidas as magnificências cenográficas do Império Romano e integrando‐se naturalmente numa rede de cumplicidades mercantis, são os primeiros a abrir‐se à modernidade, a novas técnicas, novos artefactos e novas ideias, tornando estas faixas costeiras uma inegável matriz da civilização mediterrânica do Ocidente.
As cidades portuárias de Ceuta ou Tânger começam a desenvolver‐se por influxo direto do al‐Andalus, que em toda a região e a partir do prestígio da Córdova califal, se afirmara incontestavelmente como centro polarizador. Atravessar o Mar das Éguas, ligando Faro e Arzila, ou o Mar de Alboran, juntando Almeria a Oran, passa a ser bem mais fácil e rápido do que viajar por terra, ou esperar vento favorável para dobrar o Cabo de São Vicente. Um pequeno veleiro de carga demorava dois dias a ligar Lisboa a Safim e apenas um dia se Faro fosse o porto de partida. É bom lembrar que a mesma carga que enchia os porões duma galeota, levaria quatro a cinco dias ao lombo de algumas centenas de muares, para chegar a Beja, vinda de Lisboa.
Em finais do Mundo Antigo, a endémica falta de madeira que já se fazia sentir em todo o Mediterrâneo oriental levou os construtores navais – antes de começarem a subir o Sado e o Tejo à procura de pinheiro manso e de carvalho – a explorarem o cedro nas encostas do Rif e o castanho nas serras de Silves, onde os bosques ainda vicejavam batidos pelas brisas húmidas do Atlântico. E de facto, na serra de Monchique ainda hoje se notam manchas residuais de castanheiros com os seus esguios renovos tão procurados para a mastreação e alguns troncos carcomidos de carvalhos seculares, que não são senão os destroços de uma floresta que alimentou durante séculos os estaleiros de Silves e Lagos e mais tarde as primeiras aventuras da expansão quinhentista.
Se depois da Reconquista, em todo o Barlavento, continuam os povoados comunitários da serra a fornecer gado vivo para embarque e para os açougues do litoral; os camponeses e fruticultores do barrocal a produzir os figos e passas para a exportação; os artesãos e pescadores a abastecer os mercados urbanos, porque não admitir que os barrotes de sobro e carvalho continuam a chegar aos estaleiros do litoral, onde as fustas e taridas prosseguiam as suas fainas de pesca e de corso?
Se assim foi, somos levados a supor que nos portos de Silves, Lagos ou Sagres e, do outro lado do Estreito, em Ceuta e Tânger, deve ter permanecido a melhor e mais avançada elite do tempo em termos de carpinteiros navais, calafates e navegadores. Desde tempos imemoriais que, de geração em geração, os pescadores e homens do mar deste grande golfo onde desemboca o Mediterrâneo foram aprendendo a dominar os ventos adversos e as quebras traiçoeiras do Mar Tenebroso.
Não será certamente por acaso que a primeira atestação da palavra barca aparece numa inscrição encontrada no Algarve e datada do século III d.C.
Além dos contactos nunca interrompidos entre Málaga e Tânger, Sagres e Génova ou Tavira e Salé, já em inícios do século XIV veleiros rápidos de amurada mais elevada começam a levar para as águas frias dos mares do norte o sal, o vinho e os frutos secos do Algarve.
Aqui também, nos golfos abrigados da costa algarvia, e certamente durante o Islão medieval, deve ter sido feita a grande síntese das formas de velame e das técnicas de construção naval do Mundo Antigo com uma tecnologia mais adaptada à navegação atlântica e aos mares desabridos do Norte. Está neste caso o temão ou leme de cadaste (leme axial), que se generaliza a partir do século XIV, em substituição do longo remo lateral ou de espadela. A palavra leme será de origem biscainha. Como a palavra cadaste parece ser um vocábulo moçárabe do sul de Portugal, a junção destes dois termos e a vulgarização do próprio leme de cadaste teria sido iniciada na área do Estreito, ou mesmo nas costas algarvias. Por essa mesma altura, ou um pouco antes, por meados do século XII, também nestas paragens os ventos atlânticos obrigaram a algumas significativas adaptações do velame. É o caso do aparelho misto em que é combinada a clássica vela redonda com a vela latina, ou melhor, com a vela que, por essa altura, ainda era conhecida por laterina e que, vinda do Mar Vermelho e do Nilo, começara a ser adotada desde o século VI d.C. pelos outros veleiros e mesmo pelo próprio drómon bizantino que, apesar desta inovação, sempre manteve em simultâneo a sua tração a remo. Antigas embarcações ligadas ao comércio mediterrânico, conhecidas pelo menos desde os séculos XI e XII, como a tarida, a fusta e a carraca, cruzam as mesmas águas que os pequenos e ágeis catraios e barinéis dos pescadores e piratas do Estreito de Gibraltar. É neste contexto que, em meados do século XV, surge a caravela. Esta pequena barca, de um só castelo à popa e longa verga assente num mastro de vante inclinado sobre a proa, como é tradição mediterrânica, vai abrir as rotas do Ocidente, sendo rapidamente adotada no transporte de mercadorias e sobretudo na guerra de corso. O seu alto bordo e castelo de popa, além de oferecerem maior resistência às vagas oceânicas, permitiam montar e usar de forma convincente as primeiras bombardas. Ao contrário da construção naval biscainha e hanseática, em que o cavername ou ossatura do navio é ajustado a um casco pré‐fabricado e onde o tabuado trincado se sobrepõe em escama, a caravela segue todas as tradições navais do Sul. O seu casco é liso, de tábuas aparelhadas à junta, diretamente cavilhadas numa ossatura já previamente concluída e consolidada.
Por outro lado, não podemos esquecer que na costa algarvia e, de um modo geral, na zona do Estreito, era notória desde o Império Romano uma das maiores concentrações de fábricas de salga de peixe e que foi nas suas águas que se enraizaram as mais complexas artes da pesca de cerco e de arrasto para a captura de enormes cardumes de atum e solho (esturjão). São estes homens do mar, estes pescadores, conhecedores das correntes desencontradas do Estreito, batidas pelas vagas curtas e traiçoeiras do Levante que, além de abastecerem as cidades de pescado, fazem o transbordo de gentes e mercadorias, alimentam o contrabando e, em breve, aparelham os primeiros barinéis e galeotas de corsários.
O corso, bem como a pequena e grande pirataria, foram sempre uma prática comum, sempre entendida como um simples ato de comerciar, de trocar mercadorias ou também de fazer escravos. No entanto, acabadas em Portugal as guerras de saque da Reconquista, a aristocracia vencedora e sobretudo os seus filhos segundos, desdenhosos dos ganhos fundados na atividade comercial, consideravam os “honrados roubos” proporcionados pelo corso – e que assimilavam a comuns feitos de armas – uma forma de aquisição de riqueza compatível com a sua condição superior. Tinham terminado os fossados e a distribuição de terras no Alentejo e Andaluzia, começava a guerra de corso e de conquista de além‐mar.
Nessa mesma linha de pensamento sem grandes pretextos morais ou religiosos, é o próprio poder da coroa que incentiva e alimenta as primeiras guerras de corso contra os mouros. D. Dinis, no contrato assinado em 1317 com o genovês Manuel Pessanha, menciona os homens que designa como “os meus corsários” em pé de igualdade com os marinheiros da frota real. E uma das cláusulas do referido contrato autoriza Pessanha a dedicar‐se a atividades de corso, ficando com um quinto das presas. Em 1433 o rei D. Duarte concedeu uma carta de mercê a D. Pedro, onde se regista a intenção deste infante “armar alguns navios para andarem de corso no estreito”. Por doação de 1450, D. Afonso V concede à rainha uma parte dos bens sumptuários capturados pelos corsários régios. Esta atividade de sistemática e oficial pirataria que atingia o Estreito chegou a tais proporções que, nas cortes de Lisboa de 1446 os delegados de Tavira, representando os mercadores algarvios, acusam os navios corsários portugueses de dar “mostrança que armam contra os Mouros, em vez de irem onde devem, eles no tempo da carregação andam por esta costa do Algarve e pela de Castela, de foz em fora e de porto em porto, aguardando os navios”. Cumprindo o mandato dos seus senhores, ou por conta própria, esses corsários lá iam – citando Zurara – “uns sobre a costa de Granada, outros corriam por o mar de Levante, até que filhavam grossas presas dos infiéis”. Segundo cálculos realizados a partir dos registos da autoridade marítima de Valência, uns 15,8 % dos apresamentos de que foi vítima aquela marinha atribuem‐se a corsários portugueses. No ano de 1454, piratas algarvios foram referenciados a cometer assaltos no porto de Alicante, havendo notícia das suas atividades nas imediações das Baleares, em toda a costa levantina e naturalmente nos portos magrebinos.
Armadores, cavaleiros e escudeiros de Lisboa e do Algarve, e, à frente de todos, o infante D. Henrique, a quem cabia, desde 1443, o direito do quinto das presas efetuadas, participaram e alimentaram a guerra corsária que agitava o Estreito, sobretudo o tráfico entre Marrocos e o reino de Granada. Segundo Magalhães Godinho, as navegações ulteriores à conquista de Ceuta e planeadas pelo infante não seriam senão expedições de corso que depois Zurara transformou em tentativas de dobrar o Cabo Bojador. Aliás, é fácil comprovar as depredações cometidas pelos navegadores do infante nas suas investidas de saque no litoral do reino de Granada e ao longo das costas do Norte de África. Os navegadores – corsários que serviam o infante, um Gonçalo Pacheco, um Mafaldo e um Lançarote – eram, segundo Zurara, gente capaz e experimentada nas andanças do corso.
Para além das fontes de abastecimento resultantes do próprio mercadejar, o corso era extremamente rendoso sobretudo no fornecimento de mão‐de‐obra para as galés e na venda de outros escravos nas praças de Lagos, Sevilha ou Argel. Desde sempre que piratas e corsários privilegiavam este tipo de presa, atuando na abordagem de navios ou fazendo incursões terrestres. A partir de meados de Quatrocentos até 1505, teriam entrado em Portugal mais de 150.000 escravos, embora a sua maioria já fosse, nos últimos anos, originária do Golfo da Guiné. Nessa mesma época, quando, de certa forma, o monopólio era português, o tráfico escravo, sobretudo negreiro, irá atrair outros protagonistas e estabelecer com a grande pirataria uma relação privilegiada.
O surto do corso magrebino, no início do século XVI, recebeu um grande impulso com a chegada dos refugiados mouriscos expulsos da Península Ibérica. Quando foram coagidos a escolher entre a conversão e o desterro, um grande número, sobretudo gente das cidades, onde se destacavam canteiros, marceneiros e caldeireiros, escolheu a passagem para o outro lado do Estreito. Mais tarde, esse fluxo foi alimentado com a nova vaga de revoltosos granadinos. Segundo dados mais recentes, ter‐se‐iam instalado em Marrocos cerca de 40.000 refugiados, dos quais a parte mais jovem e aguerrida foi certamente engrossar as atividades de corso e as indústrias de guerra.
A estes corsários de origem ibérica acantonados nos portos de abrigo magrebinos, seja Orão, Tetuão ou Salé, além de um natural sentido de vingança, animava‐os o saque de mercadorias valiosas, que começavam a afluir das Índias. Os carregamentos de ouro, prata e especiarias, os remadores escravos para as galés de combate e sobretudo os valiosos resgates, foram a chave de um sistema económico que utilizava o corso como principal mecanismo multiplicador. O fator surpresa, a rapidez dos bergantins e galeotas, assim como o baixo custo destas empresas, explicariam, entre muitas outras razões, a quantidade de capturas e os ganhos excecionais auferidos nestas razias.
Não é fácil de contabilizar o número de navios apresados durante os três séculos de guerra do Estreito. Foram certamente muitas centenas. Amaro Dias, por exemplo, um renegado português, condenado pela Inquisição em Málaga a 18 de abril de 1655, declarava antes de ser executado que, em menos de dez anos, tinha capturado 2.500 pessoas nas praias ibéricas. Quando eram aprisionados, os passageiros, depois de despojados de todos os seus pertences, eram avaliados segundo a idade, o sexo, a profissão e o aspecto físico para determinar o preço do resgate. Entre os séculos XV e XVII teriam sido resgatados mais de 11.000 cativos portugueses em Fez, Ceuta, Melila e Alcácer Quibir.
O contrabando nos dois lados do Estreito e todo o tipo de negócios lícitos e ilícitos nunca foram interrompidos, mesmo quando, aparentemente, as batalhas, conquistas e derrotas podiam dificultar ou mesmo impedir a circulação de mercadorias e o próprio relacionamento. Por exemplo, a história acidentada da ocupação e abandono das praças portuguesas na costa marroquina em nada interferiu nestas atividades de comércio ilegal e de contrabando.
A partir de meados do século XVI, a administração da coroa, com dificuldades em colocar num ou noutro país europeu os produtos trazidos da Índia e do Brasil, faz contratos com mercadores e contrabandistas a atuar em Marrocos. Por exemplo, Duarte Álvares, cristão‐novo, cavaleiro fidalgo da casa real e almoxarife da sisa dos panos de Lisboa, é um dos grandes negociantes envolvidos no contrabando com o Norte de África. Vicente Lourenço, natural de Portimão, inicia as suas viagens em 1545, estabelece‐se em Taroudant, no sul de Marrocos, de onde dirige uma rede familiar, de que é elemento preponderante um dos seus irmãos, que, entretanto, se tornara muçulmano. Mais tarde, já grande comerciante e acusado pela Inquisição de “trato de mercadorias defesas em Marrocos”, obtém o perdão do rei. Pedro Martins, cavaleiro da casa real, possuía casa em Arzila. Tinha um filho em Sevilha e outro na Berbéria. Traficou durante vinte anos em Marrocos e em Fez teria sido ourives do rei. Comerciava também com Taroudant, onde era traficante de armas. Muitos outros pequenos e médios comerciantes, entre os quais se encontram numerosos cristãos‐novos, com redes familiares na Flandres e na Berbéria, e negócio aberto em Taroudant, Marraquexe e Fez, onde alguns são proprietários de terras e de engenhos de açúcar, acabam por beneficiar da proteção régia, escapando às malhas da Inquisição.
Em todo este mosaico de interesses, de circuitos paralelos e obscuros – fora dos atos de conquista e ocupação militar, e portanto alheios aos feitos de armas dos conquistadores – os contrabandistas e renegados sempre foram mantidos num papel secundário e envergonhadamente tratados pela historiografia oficial. E no entanto, foram atores principais nesta plataforma marítima que durante muitos séculos tanto uniu como separou dois continentes, duas religiões e, finalmente, uma só cultura. Os renegados eram emigrantes convertidos ou antigos escravos a quem fora concedida a liberdade depois de repudiarem publicamente a sua religião e adotarem a lei e a fé muçulmanas. Alguns dos emigrantes apostasiavam simplesmente para obterem a proteção das autoridades e exercerem livremente a pirataria. Por outro lado, muitos cativos, para escapar às humilhações e violências e esperando assim melhorar as suas condições de vida, convertiam‐se ao Islão. Em 1530, Ahmad al Arussi, alcaide de Alcácer Quibir, entregou uma sua caravela ao renegado português João Vaz Maio, originário de Tavira, para participar na guerra de corso. Sob o seu comando, toda uma frota de fustas tripuladas por marroquinos e turcos organizou várias expedições de saque ao Algarve e Andaluzia Ocidental. Numa apressada avaliação do número de renegados, apenas são conhecidos alguns dados muito parcelares. Por exemplo, na Argel de finais de Quinhentos, para uma população de 100.000 habitantes, contavam‐se cerca de 25.000 escravos cristãos e perto de nove mil renegados, número que se aproxima dos dados divulgados por um relatório espanhol de 1568 onde são mencionados, para a mesma cidade, uns 10.000 conversos.Durante o século XVI, há um crescimento constante do número de renegados, que vêem na sociedade muçulmana mais abertura e tolerância que na europeia, então dizimada por guerras de religião e oprimida pelos esbirros da Inquisição. Os números são concludentes. Só em Argel os cativos passaram de 25.000 para 8.000 e, em sentido inverso, os que decidiram abjurar quase duplicaram: de 6.000 os renegados passaram a 10.200. Estes novos muçulmanos eram, por vezes, técnicos especializados na fundição de canhões, na construção de fortalezas e no comando de navios corsários. É sintomático que em 1588, estivessem fundeados no porto de Argel, ao lado de onze grandes embarcações turcas, vinte e quatro galeões comandados por renegados de vários países europeus, entre os quais espanhóis e portugueses. Eram eles as figuras principais nas grandes batalhas que diariamente se travavam na perseguição e abordagem dos pesados galeões chegados do México ou das Índias Orientais.
A conquista da cidade de Ceuta e o massacre que se lhe seguiu marcaram definitivamente o espírito e a prática da conquista e ocupação da costa marroquina. Contradizendo as tradições apaziguadoras da última fase de ocupação do Algarve e mesmo de uma certa permissividade religiosa inicialmente praticada pelos vencedores da Reconquista, este espírito guerreiro é produto de uma burguesia recentemente aristocratizada, saída da revolução de 1383‐1385 e desejosa de se ilustrar em feitos bélicos. São estes jovens de recente linhagem, segundos filhos deserdados, que já não têm pejo de ligar a gesta guerreira da conquista e as honras da cavalaria ao ganho do vil metal, ao contrabando com o inimigo e mesmo ao mais despudorado tráfico de escravos. Qualquer tentativa de trato direto, ou simples contacto com as populações das cidades conquistadas era sempre secundarizada por razões táticas de ocupação do espaço, por frenéticas lógicas defensivas face a um inimigo a quem são atribuídos maléficos e diabólicos desígnios. No caso de cidades bem povoadas na altura da conquista, como por exemplo Ceuta ou Azamor, os estrategas militares portugueses procederam a um estreitamento da área urbana intramuros, construindo uma cortina divisória, conhecida por atalho, que atravessava todo o aglomerado. No novo recinto assim criado, arrasavam todas as casas, massacrando ou expulsando a população. Esta violência marcou desde o início o contacto com as gentes locais, inviabilizando de forma praticamente definitiva todas as políticas tentadas pela casa real de estabelecer zonas de mouros de pazes. As praças africanas, cada vez mais isoladas e fechadas sobre si próprias, dependentes do abastecimento exterior, foram acentuando as suas características de instalações exclusivamente militares, de costas voltadas para o território envolvente e cada vez mais viradas para o controlo do comércio marítimo que vinha do Golfo da Guiné ou da Índia. De ano para ano acentuava‐se o seu isolamento, apenas interrompido por violentas razias conduzidas por fogosos jovens fidalgos, no tirocínio de serem armados cavaleiros, e que invariavelmente conduzia à destruição das colheitas, ao roubo de gado e à tomada de escravos. Desta forma foi crescendo nas populações circunvizinhas uma natural hostilidade e desejo de vingança. E no entanto, o contacto e o relacionamento com as populações marroquinas não só se manteve, como aparentemente foi consolidado durante estes anos de presença militar portuguesa. E para isso em nada contribuíram as praças da costa atlântica.
Assim como em Portugal permanece até aos dias de hoje a tradição popular, sempre positiva, das mouras encantadas, de que tudo o que é antigo, qualquer ruína prestigiante, é “do tempo dos mouros”, também nas tradições marroquinas, mesmo em zonas afastadas do interior, tudo o que é do passado, solidamente construído, é obra dos portugueses! E, curiosamente, tanto de um lado como do outro do Estreito, esta sabedoria popular tem uma base de verdade. No al‐Andalus, ao longo de cinco séculos, as guerras e campanhas militares foram francamente residuais em comparação com longos períodos de paz extremamente criativos no confronto de religiões, na simbiose de culturas, nas formas e técnicas construtivas. Em Marrocos, a presença portuguesa que alimentou o imaginário popular não foi certamente a ação desgarrada dos fidalgotes, que testavam a sua bravura sobre os camponeses e pastores dos campos de Sus ou Duquela. Os grandes atores do conhecimento mútuo, os impulsionadores de uma evidente aproximação cultural, os agentes e arquitetos de um património material e imaterial comum, arreigado no imaginário marroquino, foram certamente os comerciantes e contrabandistas, os pescadores e homens do mar, os homiziados e perseguidos que encontraram abrigo do outro lado, e sobretudo os conversos ou renegados que aos milhares se integraram na civilização muçulmana, contribuindo de forma decisiva para um possível diálogo e uma notória aproximação cultural.
Não podemos esquecer que em inícios de Quinhentos ainda permanecia vivo o prestígio da civilização islâmica, reavivado pouco depois com a expansão para ocidente do Império Otomano, herdeiro natural dos antigos impérios romano e bizantino. Trata‐se de um processo de orientalização que atravessa todo o Mediterrâneo e que na Península Ibérica é acentuado pela descoberta do fausto palatino da Alhambra de Granada, recentemente desvendada aos conquistadores. Nessa altura também, e sem qualquer relacionamento direto com as memórias do al‐Andalus, desenvolve‐se em Portugal uma arquitetura de inspiração mudéjar islâmica – o manuelino – que, de certa forma, confirma o fascínio que esta civilização despertava no imaginário nacional. Por todo o país, sobretudo a sul, surgem remates, platibandas e coroamentos de inspiração mourisca a envolver pátios e claustros revestidos com azulejos polícromos. É a descoberta de uma civilização do prazer em oposição à fria austeridade de um mundo românico‐gótico já decadente, mas ainda dominante nas mentalidades clericais e aristocráticas. Não é de espantar que os aventureiros com dívidas por saldar, os perseguidos por não comer carne de porco ou por jejuar aos sábados, os acusados de um crime de amor ou de honra, os jovens apaixonados por mulher casada ou inatingível, em vez de definhar nas masmorras da Inquisição, fugissem para o outro lado do Estreito, onde, ao converter‐se ao Islão, encontravam acolhimento, bom trato e muitas vezes a satisfação do sonho acalentado à socapa de possuir várias e belas mulheres, imaginadas odaliscas a dançar num pátio fresco e perfumado ao som plangente do alaúde. Como não compreender a fuga para Fez, onde eram recebidos de braços abertos, dos técnicos de armas de fogo, os fundidores de canhões, reconhecidos como os melhores especialistas do seu tempo e que, muitas vezes por razões fúteis, eram acusados e perseguidos pelos esbirros da Inquisição! Eram técnicos especializados na fundição de cobre e estanho para a produção de um bronze de qualidade, necessário ao fabrico das armas mais sofisticadas do seu tempo. Quem teria fabricado, e mesmo manuseado, as bombardas e canhões que em Alcácer Quibir dizimaram a vistosa cavalaria montada pela mais ilustre aristocracia portuguesa? Como não entender quem foram os construtores de algumas pontes de boa silharia e das fortalezas à moda italiana e portuguesa que encontramos em vários pontos de Marrocos onde nunca existiu a presença de quaisquer tropas a soldo das praças litorais? Até então, todas as técnicas construtivas utilizadas em Marrocos nos amuralhamentos urbanos mantinham a tradição almóada e merinida de utilizar a taipa militar e os cubelos quadrangulares bastante espaçados. Com a introdução das armas de fogo e, sobretudo, com a aplicação de novas técnicas de artilharia e balística, os modos de construção e a própria forma das fortalezas sofrem uma modificação radical. Na segunda metade do século XVI, começam a ser aplicadas as técnicas de construir fortalezas abaluartadas, com muralhas em escarpa à moda italiana e portuguesa.
No que diz respeito aos homens do mar – pescadores, calafates e marceneiros, mercadores e corsários – a todos eles, habitantes do Estreito, é difícil atribuir uma só origem, língua ou religião. A tradição, que durou até aos nossos dias, refere que cada pescador ou mareante tem família constituída nos dois lados do mar. Quando os ventos, sempre fugidios, mudam de rumo, quando as vagas, repentinamente, cortam o caminho, não há outra razão senão ficar, esperando a nortada acolhedora. Todos estes homens, meio judeus, meio cristãos‐novos, meio cristãos ou muçulmanos, eram também maiorquinos, algarvios ou berberiscos. São eles a fazer o transbordo do contrabando, a resgatar prisioneiros, a roubar e saquear as costas de Arzila ou de Tavira. Todos se entendem em árabe, que é a linguagem internacional da época.
Finalmente, não podemos esquecer que em Marrocos, excluindo os camponeses do interior, quase exclusivamente de cultura berbere e tuaregue, a partir do século XVI a maioria dos habitantes das principais cidades do norte, sobretudo as elites, é de origem ibérica ou teve fortes relações familiares com o outro lado do Estreito. Além da constante deslocação de populações praticada durante os impérios magrebinos do século XII, destacamos as expulsões massivas de judeus e mouros de finais de Quatrocentos e sobretudo os milhares de habitantes de Granada e Alpujarras que nos séculos XVI e XVII passam a viver em Fez, Salé, Tetuão ou Tânger. Não podemos esquecer que todos os conversos, que foram certamente a grande maioria, na cerimónia de abjuração perdem para sempre qualquer referência ao seu antigo nome cristão. Há por vezes um esforço de tradução, por exemplo de um José para Iosif, mas esses são casos raros. A maioria quer apagar o passado e integrar‐se completamente na nova sociedade. A simbiose cultural está praticamente concluída, e, de certa forma, constituído e consolidado o património material e imaterial comum aos dois lados do Estreito, quando as tropas portuguesas invadem o Magreb e começam a construir e a instalar‐se nas suas fortalezas da costa atlântica.
Cláudio Torres
Portugal e a costa atlântica de Marrocos
Basta olhar para um mapa com os pontos da presença portuguesa em Marrocos para reconhecer que uma parte deles constitui um núcleo de centros urbanos e fortalezas que se agrupam mais a sul: Mazagão, Azamor, Safim, Mogador, Aguz, Agadir e Massas. São estas localidades que aqui nos interessam.
Do ponto de vista das estruturas que foram edificadas, das linhas de atuação nas áreas envolventes e até do património que nos ficou, reconhecemos a presença cristã portuguesa cercada num meio muçulmano hostil; todavia, são visíveis especificidades que merecem ser reconhecidas.
De facto, se a conquista das cidades mais próximas do Estreito de Gibraltar e a construção das respectivas fortalezas estão ligadas à política externa tradicional, centrada nas relações com o Mediterrâneo e a Europa do Norte, a continuação da conquista para sul obedece a uma lógica que aponta para as realidades que Portugal ia ajudando a construir: a expansão europeia no Atlântico em direção ao Índico.
Ainda na primeira metade do século XV, num processo que tinha o infante D. Henrique como figura política central, teve início um progressivo reconhecimento da costa ocidental africana, na ultrapassagem dos grandes cabos, como o Não, o Bojador (1434), o Baldaia (1436) e o Branco (1443), que, pelas dificuldades que implicavam, marcavam o ritmo das navegações. Quanto mais para sul Portugal descobria a costa africana, maior necessidade tinha de pontos de apoio para a navegação, ao menos durante o século XV, em que as viagens para a Guiné ainda se realizavam bastante próximo da costa. Ter locais para fazer boas aguadas, por exemplo, era um precioso auxílio às navegações. Era o caso de Anafe, a norte, e Safim, mais a sul.
Entre as praças desta área meridional, Safim servia outras funções e era bem conhecida dos portugueses antes da sua conquista. Magalhães Godinho, na sua obra em que descreve com detalhe os recursos que era expectável os portugueses encontrarem no Marrocos atlântico, apresenta uma cidade rica em tecidos, onde, desde 1456, os portugueses compravam os famosos alambéis e alquicés, que lhes serviam como um dos produtos essenciais para as trocas com os povos do Golfo da Guiné. Também Duarte Pacheco, ao descrever Safim, informa que ela era rica em carne, peixe, trigo, cavalos, cera e mel. Para Portugal, esta cidade não se incluía só na sua lógica de expansão norte‐africana, mas estava ligada à nova realidade que ia sendo construída no Atlântico.
Mas, para compreender plenamente o sentido da presença portuguesa nesta região e dos locais que foram ocupados, é necessário enquadrar a questão nas relações com Castela e as áreas de expansão dos dois reinos. É que uma boa parte das ocupações funcionou como uma espécie de moeda de troca nos negócios peninsulares. Não deixa de ser curioso notar que, de uma forma geral, as relações de Portugal e Castela no Mediterrâneo eram caracterizadas por uma razoável cooperação, mas, no Atlântico, a rivalidade e a competição predominavam.
Analisemos esta questão mais de perto, seguindo, no essencial, Pierre de Cénival. De uma forma sintética, diga‐se que a discussão entre Portugal e Castela está relacionada com os direitos sobre as Canárias e com a herança da Tingitânia antiga, cujos limites eram duvidosos. Para complicar a situação, havia uma muito velha tradição que ligava fortemente as Canárias à costa de África adjacente. Esta ligação já existia desde tempos antigos e prolongou‐se até ao século XV; as gentes das Canárias vinham a África, incluindo a área a sul do Bojador, capturar escravos, atividade que, segundo as regras da época, incorporava um direito de poder reivindicar a posse da própria terra. Quando os portugueses tomaram Ceuta em 1415 o problema complicou‐se, já que o direito de posse se reforçava com a legitimidade política e religiosa da conquista. Muito antes, terá sido esta a razão por que, em 1427 e 1428, D. Henrique, depois do falhanço de todas as tentativas de ocupação das Ilhas Canárias, adquiriu os eventuais direitos de sucessão de Maciot de Béthencourt, um sobrinho do conquistador do arquipélago que se submetera à suserania da coroa castelhana. Para reforçar o quadro dos seus direitos ainda frágeis, D. Henrique virou a sua atenção para o papa.
Assim, a 8 de janeiro de 1454, o infante, como resposta a atitudes do rei de Castela, que fizera doação das Canárias ao duque de Medina Sidónia, conseguiu do papa Nicolau V uma bula, Romanus Pontifex, que dava aos portugueses as terras tomadas perto de Ceuta e, além disso, as descobertas depois do Bojador e do Cabo Não, este último bem em frente da Ilha de Lançarote. Mas a bula não era clara acerca dos direitos dos dois reinos sobre a costa atlântica, permitindo que Castela afirmasse que a linha divisória da partilha passava pelo Cabo Bojador, enquanto para Portugal o limite seria o Cabo Não, bem mais a norte. Por isso, mesmo durante a segunda metade do século XV, Portugal conseguiu tomar várias praças marroqui‐ nas, enquanto os das Canárias continuavam a fazer as suas razias habituais.
Um dos primeiros momentos em que a situação conheceu alguma mudança séria foi o Tratado de Alcáçovas/Toledo, de 6 de março de 1480. Este acordo, nascido da derrota política das ambições de Afonso V a poder condicionar a coroa castelhana, abordou também a questão marroquina e implicou algumas cedências por parte de Portugal no que dizia respeito a Marrocos. Com efeito, Portugal renunciou então aos direitos que afirmava deter sobre as Canárias, embora lhe fosse reconhecido o direito de continuar com as conquistas da Guiné e a posse das ilhas descobertas ao sul das Canárias; cumulativamente, mantinha os direitos de conquista sobre o reino de Fez. Todavia, mais uma vez, a ambiguidade dos textos dos próprios acordos, em especial sobre os limites do reino de Fez, permitiu a continuação dos conflitos e Portugal procurou postergar, ou anular, o que ficara acordado. Não deixa de ser curiosa a situação de Portugal e Castela se confrontarem por terem dificuldades em delimitar o reino de Fez, enquanto para os interessados, a população e o próprio monarca africano, a questão era pacífica.
Um dos objetivos do Tratado de Tordesilhas, datado de 7 de junho de 1494, foi precisamente tentar regulamentar o conflito dos limites do reino de Fez. Mas, quanto a esta questão da definição fronteiriça, as reservas mentais sobre as verdadeiras intenções das duas partes parecem claras. Neste tratado ficou acordado criar‐se uma comissão que estudaria o problema do limite sul do reino de Fez, o que foi uma forma de adiar a resolução da disputa e, como os acontecimentos posteriores parecem apontar, tentar obter vantagens no terreno. A questão, aliás, não se esgotava só na delimitação da costa do Atlântico, mas também incluía uma parte virada ao Mediterrâneo, onde Portugal parece ter tido alguma influência e presença militar. Aqui, o rei de Espanha pretendia que o designado reino de Velez estava fora da área de delimitação do reino de Fez e, por isso, reivindicava toda a região compreendida entre Caçaça e Melilla. No Atlântico, havia então uma percepção de que o limite sul do reino de Fez era próximo de Massa, embora fosse discutível o local exato da fronteira. Este facto permite compreender o interesse português nesta localidade, e terá sido esse o objetivo de D. Manuel quando, a 11 de janeiro de 1497, acordou com os habitantes de Massa ser seu senhor, sendo em troca permitido aos portugueses a construção de uma fortaleza para acolher um feitor.
Do outro lado, o castelhano, também ninguém ficou parado. No quadro da situação anterior ao acordo de Alcáçovas/Toledo, nos anos de 1477/1478, Diogo de Herrera, senhor das Canárias, dirigiu a construção da fortaleza chamada Santa Cruz de Mar Pequeña, localizada ao sul de Massa e a norte do Cabo Não. Este forte respeitava, por isso, a interpretação que os castelhanos vinham dando à bula de Nicolau V, mas aumentava o clima de insegurança para Portugal, que se interrogava sobre as reais intenções de Castela.
Com o tempo, este tipo de conflitos muito prolongados constituía um verdadeiro quebra‐cabeças para a coroa portuguesa, pois o outro lado também procurava responder com novas ações, muitas vezes inesperadas, o que obrigava o monarca a mobilizar recursos e manter uma constante atenção ao problema; foi o caso da bula Aeternis Regis, de 21 de junho de 1481, que o rei de Castela conseguiu do papa e pela qual eram reconhecidos aos castelhanos os direitos de pesca a sul do Bojador. Ao tempo, conhecida a bula, esta representava uma séria ameaça aos portugueses, dado que introduzia um fator de perturbação na discutida interpretação da bula de Nicolau V. A pressão castelhana para obrigar Portugal a desistir dos seus direitos, ou tão‐somente a respeitar os pontos de vista castelhanos, era uma constante. Um exemplo foram as expedições que organizaram contra o Cabo de Guer, zona aceite por ambos como portuguesa, durante o ano de 1483.
Estes movimentos de resposta de uma coroa à outra eram uma constante. Provavelmente para responder aos novos desafios lançados por Castela, em 3 de julho de 1486, D. João II conseguiu celebrar alguns tratados de vassalagem com tribos locais e colocou Azamor sob suserania portuguesa. Era um processo sem fim. Já depois de Tordesilhas, em 1499, entre os dias 15 e 23 de março, Lopo Sanchez de Valenzuela veio, na região entre as Canárias e a costa africana, receber a submissão de várias tribos e vilas da costa, nomeadamente Tagaost (capital da zona do Cabo Não), Tamanar, Ifran e Ifni, parecendo com esta atitude preparar‐se para uma ocupação mais consistente. No ano seguinte, em 1500, Afonso de Lugo, Adelantado das Canárias, passa à África para começar essa ocupação, tendo por missão a construção de três fortes: um junto ao Cabo Bojador, outro junto ao Cabo Não e o terceiro perto de Tagaost. Começou o seu trabalho com o projetado para o Cabo Não, o qual foi construído em tempo recorde, com madeira e apresentando um fosso por ele chamado de San Miguel de Saca (nome retirado do Oued Asaka). Em 1504, o mesmo senhor, depois de cuidadoso planeamento, tomou a praça de Agadir. Esta conquista representava para os povos locais e para Portugal uma ameaça insustentável, dado que a tomada desta cidade era um ataque direto aos direitos de Portugal, já que Agadir estava, sem discussão, na área considerada historicamente de influência portuguesa. Eis porque foi necessário mobilizar um exército, neste caso constituído pelos habitantes de Massa e pelos seus aliados portugueses, que finalmente conseguiram expulsar da cidade os espanhóis.
Esta pressão espanhola, que ia em nítido crescendo, preocupava D. Manuel, que por isso autorizou, em 1505, João Lopes de Sequeira a construir o Forte de Santa Cruz do Cabo de Guer, com o objetivo de proteger Agadir. Em resposta, mais a norte, Fernando o Católico mandou ocupar em 1508 o Peñon de Velez, com o pretexto de tentar conter os piratas que se lançavam em constantes pilhagens sobre as costas da Andaluzia.
Era claro para todos que, com o aprofundamento destas políticas e ações agressivas, os dois reinos entrariam rapidamente numa lógica de guerra. É neste contexto de alguma pacificação que se compreende o Tratado de Sintra, que em 1509 procurou pôr fim às divergências entre os dois reinos. Aparentemente, foi só com este tratado que tudo se tornou mais claro e mesmo mais pacífico entre os dois reinos. Eis, por exemplo, como Massa, que não era um ponto essencial da presença portuguesa na costa africana, rapidamente deixa de ser mencionada nas fontes portuguesas. É este quadro que permite compreender por que razão algumas das ocupações da costa africana foram fugazes, ou porque, depois de perdidas, os portugueses não as procurassem reaver.
A verdadeira rivalidade luso‐castelhana no Atlântico é evidente. Em Santa Cruz do Cabo de Guer, por exemplo, os portugueses contaram com a oposição da tribo berbere dos cacimas, e as gentes de Agadir Larba eram mesmo vassalos de Castela. Era uma situação comum. Não é surpreendente por isso que, numa carta de 28 de setembro de 1498, Diogo Borges, regressado de Safim, confirmasse, em carta dirigida à rainha regente D. Leonor, que, na cidade, havia um partido pró‐espanhol. Uma das grandes razões que levaram a coroa portuguesa a desenvolver grandes esforços para casar D. Jaime, 4.º duque de Bragança, com a filha do duque de Medina Sidónia, Leonor de Mendonza, era a influência que esta casa tinha no Norte de África, que poderia ser importante para as possessões do sul de Marrocos e assim influenciar a política de Castela.
É necessário não exagerar numa construção demasiado racional dos comportamentos e das análises politicas da época. A ideia de que Portugal, reino cristão por excelência, tinha um dever inalienável de combater o infiel condicionava a forma como todos olhavam os acontecimentos e faziam as suas escolhas. Se acrescentarmos a isto as práticas de pilhagem como fontes de rendimentos da nobreza portuguesa, podemos compreender que tanto as políticas mais globais do reino para o Norte de África como as opções de relacionamento com os poderes locais variavam bastante em cada praça.
Comecemos por observar algumas destas práticas da nobreza portuguesa. Apesar da fragilidade dos dados existentes, tudo indica que, nas fortalezas portuguesas marroquinas do Estreito, em especial em Ceuta, era a casa dos Meneses e Noronha, condes de Vila Real, que teria uma rede de relações mais organizada. Ao contrário, para as fortalezas do sul, a casa de Bragança não só organizou e comandou a expedição que tomou Azamor em 1513, como parece ter tido alguma influência na região. Nesta zona as rivalidades entre os capitães de Safim e Azamor eram uma constante, e conduziam a políticas contraditórias com os aliados mouros. No geral, predominavam práticas de pilhagem e correrias militares, à mistura com atitudes políticas mais hábeis, no sentido de trazer grupos locais para o lado dos portugueses. Esses grupos e até tribos que apoiaram, durante um curto período, a presença portuguesa, eram conhecidos como os mouros de pazes e eram também o resultado de rivalidades internas. No território da Duquela, por exemplo, várias tribos dividiam o território entre Azamor e o norte de Safim. A leste e sul de Safim predominavam os abdas, enquanto os xiátimas dominavam a área a norte de Mogador. Ainda hoje, a região, oficialmente conhecida como Dukkala Abda, incorpora no seu nome a tribo mais relevante e que tenazmente se opôs aos portugueses. Para ter uma breve perspectiva da complexidade da questão, tome‐se o exemplo dos anos posteriores a 1510. Nessa época, Nuno Fernandes de Ataíde, capitão de Safim e conhecido como o “nunca está quedo”, deu início a uma série de campanhas vitoriosas que conduziu a um amplo domínio político da região, consolidado com a derrota dos exércitos do rei de Fez em 1514. A sua política agressiva nem sempre tinha o apoio do líder dos mouros de pazes, o alcaide conhecido como Bentafufa. Este acompanhava o capitão da praça em muitas das suas incursões, ajudou‐o a criar uma vasta área de aliados na região e estava presente na batalha dos alcaides, mas, apesar de tudo, tinha com o capitão de Safim tais desentendimentos que foi mandado regressar a Portugal.
Morto o “nunca está quedo” em 1516, Bentafufa volta a ser nomeado alcaide dos mouros aliados dos portugueses, com amplos direitos e doações, entre os quais o direito de nomear cobradores de impostos e arrecadar as rendas da vila de Cernu e, especialmente, poderes que parecem apontar para uma atuação num quadro de relações menos violento face aos muçulmanos. Morreu numa cilada, às mãos dos seus arqui‐inimigos, os abdas, e com a sua morte Portugal viu enfraquecer as suas possibilidades de consolidar uma presença sustentável.
Se por esses anos terão começado as acrescidas dificuldades dos portugueses, não é por demais lembrar que, apesar de o enorme impacto que a chegada de Vasco da Gama à Índia tinha provocado e os frenéticos acontecimentos que se lhe seguiram exigissem a atenção real, não há dúvida que, com D. Manuel, a Duquela e a Enxovia, as duas grandes regiões do sul de Marrocos, ocupavam um lugar central nas preocupações políticas do rei.
Mas os ventos políticos estavam a mudar. Desde os inícios do século XVI, a progressiva emergência da dinastia dos Sádidas, mais islamizados e inteiramente contrários à presença portuguesa, foi criando para Portugal uma pressão cada vez mais difícil de suportar. As praças marroquinas começaram assim a tornar‐se um encargo que exigia a utilização de mais vastos recursos financeiros, a mobilização de maior número de gentes de armas e abastecimentos mais complexos e caros. Para mais, várias das funções desempenhadas por estas fortalezas tinham deixado de fazer sentido. Os panos de Safim podiam facilmente ser substituídos por outros produtos, a navegação para as regiões da Guiné ou do sul do Atlântico deixaram de fazer‐se junto à costa e, afinal, muitas das elites portuguesas estavam fascinadas pela miragem de riqueza que a Índia e o Brasil significavam. Os argumentos “morais” que eram invocados, apesar de maioritários, não foram suficientes para convencer o monarca português. Em 1525, o rei de Portugal manda derrubar o castelo de Aguz, e, em 1541, no mesmo ano em que os xarifes saaditas do Sus tomaram Santa Cruz do Cabo de Guer, também Azamor e Safim são definitivamente abandonados. Em 1550, já só em Mazagão se podia hastear a bandeira portuguesa.
Filipe Themudo Barata