Fortaleza de São Tomé

Fortaleza de São Tomé

Diu, Guzerate, Índia

Arquitetura militar

Sob a ameaça da expansão do Império Mogol, o sultão do Guzerate, Bahadur Shah, cedeu a praça de Diu aos portugueses, autorizando a construção de uma fortaleza em troca de ajuda militar. É seguro afirmar que a fortaleza integrou uma estrutura guzerate anterior, uma espécie de plataforma defensiva da barra, diretamente relacionada com as obras de fortificação da cidade, atribuídas a Malik Ayaz, governador de Diu, aquando da chegada dos portugueses à Índia, e com a construção do Fortim do Mar. Depois de assinado o tratado com o sultão, em setembro de 1535, tiveram início as obras, supervisionadas por Martim Afonso de Sousa, comandante português no terreno. No entanto, o início formal só viria a acontecer em 21 de dezembro, dia de São Tomé, com o lançamento da primeira pedra do baluarte com o mesmo nome e que, com o tempo, viria a ser a designação do conjunto fortificado e da igreja matriz.

Os trabalhos começaram na parte mais oriental da ilha, onde o solo rochoso e a configuração triangular do terreno ofereciam condições mais favoráveis para o estabelecimento de uma posição fortificada, permitindo que se aproveitasse, ao máximo, quer a norte, quer a sul, a defesa natural proporcionada pela costa escarpada. A ocidente, defronte para a cidade, o investimento nas obras foi maior. O processo de construção da fortaleza foi descrito por alguns autores, entre os quais Lopo de Sousa Coutinho, cronista do primeiro cerco de Diu, em 1538, relatando que os primeiros trabalhos se concentraram na construção de dois baluartes ligados por um pano de muralha, relativamente extenso: a sul, o baluarte de São Tomé, posteriormente conhecido por baluarte Cavaleiro, por ser o mais proeminente do conjunto, e a norte, o baluarte de São Tiago, também designado por baluarte Menor, junto do qual se abriu a porta da fortaleza. Na mesma altura, foi aberto, em frente à muralha, um fosso que ligava o canal ao mar, criando-se assim uma ilha artificial no extremo da ilha de Diu. A imagem do Roteiro de Goa a Diu de João de Castro, datada de 1538/1539, apresenta a primeira versão da fortaleza, com uma feição marcadamente medieval, e o que estado em ficou após o assédio otomano.

Entre 1538 e 1546, período entre cercos, procedeu-se à reconstrução do dispositivo fortificado inicial, nele se introduzindo melhorias e revisões, sob a supervisão de Manuel de Sousa de Sepúlveda, novo capitão de Diu, com o objetivo de aumentar a sua capacidade defensiva. Na extremidade sul da muralha, levantou-se a torre de São Tiago, junto à capela dedicada ao mesmo santo; a seguir ao baluarte de São Tomé, construiu-se o baluarte de São João, de tamanho inferior ao primeiro, sobre parte da antiga cava; a porta da fortaleza, junto ao baluarte de São Tiago, foi fechada e substituída por uma torre, designada na época como torre nova sobre a porta. Junto do baluarte de São Jorge, erguido na mesma campanha, abriu-se um passadiço, criando uma nova porta em cotovelo. Reforçou-se, ainda, a autonomia da fortificação face ao resto da ilha através da reabertura do fosso que ligava o canal ao mar. Da mesma época datam o reforço do ponto extremo da fortaleza (que viria a dar origem ao baluarte de Santa Teresa), o cais, e a couraça. Esta campanha de reconstrução foi, em grande parte, retratada no desenho publicado por Gaspar Correia, inserto no terceiro volume das Lendas da Índia, não obstante o nítido exagero do aglomerado urbano no interior da fortaleza. A epigrafia do forte, recolhida, entre outros, por Cunha Rivara e Michael Telles, atesta, igualmente, estas construções e adições na mesma cronologia. Em suma, o projeto concretizado entre cercos resulta de um período de transição onde os elementos de raiz medieval se misturam com os novos dispositivos adaptados à pirobalística que, no entanto, se viriam, a revelar insuficientes e inoperantes por altura do segundo assédio, tendo-nos dando conta disso mesmo Sebastião Coelho, homem de armas com larga experiência na arte da guerra.

O segundo assédio, desta vez guzerate, desenrolado entre abril e novembro de 1546, foi maior e mais forte, colocando à prova a capacidade defensiva da fortificação. A artilharia disparada e a minagem concebida pelas tropas guzerates e pelos mercenários da Península Arábica, enquadrados por alguns oficiais otomanos contratados, debilitaram grandemente os baluartes, torres e muralhas portuguesas: o pano de muralha entre o baluarte de São Tomé e a torre nova sobre a porta foi consideravelmente afetado, levando ao rebentamento completo do baluarte de São João, alvo de intensa minagem. Em consequência destes ataques, durante o próprio cerco, construíram-se algumas posições temporárias, tomando-se como exemplo a tranqueira improvisada no lugar do baluarte que explodiu.

A vitória dos portugueses na batalha de 10 de novembro de 1546, liderados pelo governador João de Castro, levou à reedificação da estrutura com profundas alterações, uma vez que o flanco oeste ficou consideravelmente arruinado e o seu fosso completamente entulhado. Pressionado pela forte possibilidade de um novo ataque guzerate, João de Castro entendeu ser impossível reerguer a muralha principal a tempo, preferindo edificar uma nova linha defensiva, imediatamente a oeste do fosso, com três novos baluartes - os de São Filipe e de São Domingos (ou da Madre de Deus) nos extremos, e o de São Nicolau ao centro -, de frente angular, providos de mecanismos de tiro cruzado para se defenderem uns aos outros, seguindo o modelo das fortalezas desenvolvidas na Península Itálica, no meio século anterior, solução que havia sido ensaiada, entretanto, nas Fortalezas de Mazagão (1541) e de Ceuta (1541-1544). As obras foram conduzidas por Francisco Pires, um desses mestres-pedreiros de transição para engenheiro, com tirocínio em Ceuta, entre o fim do segundo cerco e abril de 1547. Conserva-se ainda o registo das despesas efetuadas nestes trabalhos, destacando na sua direção, para além do referido Francisco Pires, os mestres Afonso Madeira (mestre-pedreiro), Pero (mestre das ferrarias) e Francisco de Resende (mestre dos carpinteiros).

A abertura do novo fosso em 1550, conforme inscrição epigráfica, restaurou a ligação do mar ao rio. Após a construção da nova linha defensiva, a antiga muralha foi reedificada, à exceção do baluarte de São João, dada a dimensão do seu desmoronamento durante o segundo cerco. Posteriormente, em 1630, foi reaberto o fosso entre muralhas e construída a ponte que ainda hoje liga a antiga cortina à nova. As obras de 1546-1547 viriam a ser reforçadas e revistas nos séculos seguintes, mas sem nunca alterar significativamente a estrutura então construída. Talvez por se tratar da primeira experiência de fortificação abaluartada edificada no Oriente, preconizando o flanqueamento mútuo de tiro, subsistem dúvidas quanto à sua eficácia tendo em conta observações efetuadas no local e recentes levantamentos topográficos.

Em 1634, o vice-rei Miguel de Noronha, conde de Linhares, enviou a Diu uma equipa de três inspetores encarregue de elaborar um relatório que preconizasse soluções que tornassem a fortaleza inexpugnável. Entre as medidas propostas, foram consequentes as seguintes: destruição de parte do casario situado a oeste da fortaleza para criar uma zona livre de construção e assim dificultar operações de cerco e bateria; reformulação do baluarte de São Domingos (1639, 1641 e 1682), do baluarte Cavaleiro (1639 e 1682) da casa da pólvora (1632 e 1680), da Cisterna da Rainha (1643), do baluarte de Santa Teresa (1652) e do armazém dos mantimentos (1650). Procurou-se, deste modo, aumentar a eficácia defensiva do complexo fortificado contra diversas ameaças, como aquela produzida pelo ataque omanita de 1668, responsável por uma considerável destruição da cidade.

De seiscentos a novecentos, as obras de construção, reforma, manutenção e melhoramentos da fortificação foram uma constante, estando largamente documentadas pela epigrafia, utilizada sempre que se efetuavam quaisquer reparos, pequenos e grandes, a baluartes e outras estruturas. Com a queda de Baçaim, em 1739, e a perda de quase toda a Província do Norte, a fortaleza de Diu tornou-se um bastião isolado na península de Katiavar, sobrevivendo então do comércio e da pesca. Nos finais do século XVIII, ruiu a igreja matriz da fortaleza, caindo o pórtico da entrada nos inícios do século XIX. O desmoronamento da igreja da Misericórdia data de 1825, extinguindo-se assim os principais locais de culto no interior da fortificação, apesar de subsistirem algumas capelas como a de São Tiago. Em meados do século XIX, a fortaleza já só alojava a guarnição militar. O início do século XX testemunhou a criação do Museu Arqueológico de Diu na Igreja de São Tomé, transferindo-se para esse local grande parte da epigrafia existente na fortaleza e na cidade.

Fruto das grandes campanhas do século XVI, a fortaleza de São Tomé de Diu constituiu um dos maiores investimentos da Coroa portuguesa e do governo de Goa, ao longo de várias centúrias. Para além do seu valor patrimonial evidente, o forte apresenta-se como um exemplo pioneiro da arquitetura militar portuguesa na Ásia, que convocou soluções antigas e riscou novos modelos, sobrevivendo até aos dias de hoje os vários registos desses desenvolvimentos sucessivos e justapostos uns aos outros.

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