Edifício de Comércio e Equipamento Montegiro/Hotel Chuabo

Edifício de Comércio e Equipamento Montegiro/Hotel Chuabo

Quelimane, Zambézia, Moçambique

Equipamentos e infraestruturas

O empório comercial Monteiro&Giro, com administração no Porto, detinha interesses em Moçambique de natureza diversa, entre a exploração de matéria-prima, a criação de gado e o cultivo de algodão e chá. Nos anos 50, a ideia de instalar a sede em Quelimane, cidade portuária que polarizava a actividade comercial da província da Zambézia - uma posição estratégica potenciada pelos negócios cada vez mais prometedores da colónia - conduziu à encomenda de um importante projecto de arquitectura ao atelier de Arménio Losa (1908-1988), e Cassiano Barbosa (1911-1998).

Pretendia-se que este edifício não só viesse a acolher as instalações da empresa, conferindo-lhe uma visibilidade que não possuía até então, como permitir explorar outras frentes de negócio, nomeadamente na área turística e imobiliária. Um desígnio desta natureza, ao implicar uma obra de uma escala urbana inexistente no norte de Moçambique, dotaria a pequena cidade de Quelimane de um dispositivo que marcaria indelevelmente o seu perfil, atribuindo-lhe uma vocação cosmopolita e moderna.

O Complexo M&G é, assim, composto por dois projectos simultâneos que, embora autónomos, dependem intrinsecamente um do outro. Uma proposta citadina e um conjunto industrial que invocam a densa urbanidade da Unité d´Habitation e o conceito da Fábrica Verde que Losa tinha, tão veementemente, defendido no Congresso de 48.

O Complexo Monteiro & Giro, da autoria dos arquitectos Arménio Losa e Cassiano Barbosa, com a coordenação do engenheiro António Ribeiro da Costa (1928-), desenvolve-se inicialmente a partir do complexo industrial, (1956-1960) estabelecido para suprimir as necessidades de construção do pólo urbano com um programa multifuncional reunido num bloco de presença urbana singular articulando habitação, comércio e serviços, e integrando o paradigmático Hotel Chuabo (1954-1968). 

O Pólo Urbano 

Implantado no topo do quarteirão entre as avenidas Samora Machel, e Samuel Magaia, e a Travessa 1 de Julho, em frente à Catedral Velha, o edifício Chuabo apresenta-se como um quarteirão completo que, embora composto por blocos funcionalmente diversos, observa uma integridade formal notável, assumindo uma ambição urbana colossal em relação à cidade, o edifício é expressão da monumentalidade moderna.

Constitui-se como um edifício único que inclui quatro volumes diferenciados cujos usos que respondem às circunstâncias urbanas específicas das suas várias frentes. Um hotel de grande dimensão, instalado no corpo mais elevado do conjunto e na sua frente urbana principal, e três outros blocos que albergam habitação colectiva, comércio e serviços. Ocupando parte do interior do quarteirão e encerrando o seu topo norte, um volume diferenciado, com dois pisos, contém a garagem e uma estação de serviço, juntamente com armazéns de apoio às actividades desenvolvidas.

O programa organiza-se em camadas horizontais, o comércio (por vezes apoiado por um patamar intermédio que aproveita o elevado pé-direito) situa-se no piso de contacto com rua e o sector multifuncional no nível imediatamente acima; segue-se, nos andares superiores, a área residencial, organizada segundo várias tipologias que se repartem pelos três blocos. As galerias de distribuição, servidas nos topos dos blocos por caixas de escadas que os rematam, envolvem o pátio conectando todos os usos. Protegidas por brise-soleil que desenham e conferem coerência à fachada do interior do quarteirão, essas galerias funcionam como ruas aéreas, espaço colectivo que medeia o público e o privado.

O hotel, com nove pisos, segue esquema similar de sobreposição funcional, propondo um átrio com duplo pé-direito, sobre o qual se dispõe uma mezzanineque o articula com as áreas sociais. O volume que lhe corresponde destaca-se no exterior do edifício, um corpo projectado sobre uma profunda pala que percorre a avenida marcando e protegendo as entradas do hotel, do bar e de um dos blocos laterais, constituindo um embasamento sobre o qual se destaca o volume dos quartos de hotel. O edifício remata no topo superior com um piso ligeiramente recuado onde se localizam a sala de jantar e a boîte, ligadas por uma extensa varanda que se abre sobre o rio e a  paisagem que rodeia a cidade.

À aparente estratificação horizontal do edifício contrapõe-se uma vibrante espacialidade quando é lido em corte: o que deixa supor, aliás, que este é um projecto pensado nas múltiplas variantes da secção vertical que proporciona, tanto longitudinal como transversalmente. Face à relativa compacidade volumétrica que apresenta exteriormente, o edifício recorta-se quando é lido em perfil, todo ele trabalhado de forma a estabelecer tensões e equilíbrios perceptíveis a quem habita o espaço a partir do seu interior – reconhecendo-se aqui, também, a herança corbusiana.

Associadas à sua monumentalidade, a diversidade e a justaposição de tipologias activaram a concentração e a mescla de usos, intensificando a urbanidade do edifício e atribuindo-lhe, assim, um papel fulcral na configuração modernada cidade.

O edifício do Chuabo mostrou-se, ainda, uma oportunidade para desenvolver um desenho de simbiose entre várias escalas e temas: os arquitectos criaram um design global, que cruzou no projecto de arquitectura decisões de ordem urbanística com a concepção integral do mobiliário, não obviando a inclusão de obras de arte europeias e nativas – que podem ser apreciadas tanto no átrio de entrada como no extraordinário fresco realizado por cinco artistas locais que cobre a parede da boîtedo Hotel Chuabo. 

O Complexo industrial 

O complexo industrial, localizado em Muirua, a 15km de Quelimane, tem uma presença insólita em Quelimane, ligada à riqueza da exploração do vale do Zambeze, com produtos como o chá ou o algodão, mas também com a descoberta de recursos cerâmicos que estão na base da criação da Fábrica de Cerâmica do Complexo Monteiro & Giro (1956-1960).

Implantado na proximidade do depósito de argila e estrategicamente adossado à linha do caminho-de-ferro – foi concebido como um conjunto de apoio directo às instalações fabris, uma vez que era necessário alojar os trabalhadores que prestavam suporte técnico à produção.

Planeado como uma estrutura organizada axialmente em torno de um arruamento que liga o exterior do terreno ao seu centro, este aglomerado compreende a fábrica de cerâmica, um conjunto habitacional para trabalhadores e o respectivo equipamento colectivo. Deste, destaca-se a messe, um singular edifício que polarizava a vida social e providenciava refeições aos residentes. Os espaços exteriores, que previam jardins e zonas de recreio para adultos e crianças, complementavam este conjunto fabril, idealizado como um microcosmo onde as 4 funções se complementavam. Simultaneamente, ao instalar-se em plena natureza, o projecto propunha que as árvores e os jardins rodeassem a fábrica, materializando, de alguma forma, a fábrica verde cuja apologia Losa tinha feito no Congresso de 48.

Embora com uma encomenda do projecto mais tardia (1956) do que a do edifício Chuabo (1954), a premência da laboração da fábrica, tendo em vista o fornecimento de materiais para as respectivas obras, fez com que o desenho e a edificação deste núcleo avançassem em primeiro lugar.

As casas, geminadas, são volumes paralelepipédicos elevados sobre pilotis e rematados por uma cobertura de duas águas revestida a telha cerâmica. Destinadas a famílias residentes, distribuem-se perpendicularmente ao caminho de distribuição, rodeadas por pequenos logradouros que os arquitectos insistiam em não encerrar para não perder o sentido vasto do conjunto.

Um outro edifício, desenvolvido em banda contínua, alberga apartamentos tipo hotel, destinadas a visitantes e a técnicos não acompanhados por família. Implantado no alinhamento do corpo abobadado da messe e com ele articulado directamente por meio de uma passagem coberta - um corredor aberto que une os dois edifícios num só conjunto arquitectónico - conforma o remate do aglomerado, constituindo-se como o seu ponto dominante e de convergência.

A messe, um belíssimo edifício do ponto de vista formal e construtivo, é definida por uma cobertura em abóbada, um cruzeiro apoiado nos seus quatro cunhais, delimitando uma superfície quadrada com cerca de 440m2 e funcionando como um grande guarda-sol de protecção. Sob o seu centro geométrico encontra-se a sala de restaurante e os serviços directos que ocupam também um quadrado, sugerido pelo tecto - uma estrela invertida, suspensa por quatro pontas - e envolvido por grandes caixilharias de correr que permitiam abrir o espaço para a esplanada exterior.

Ambos os projectos, para Quelimane e para Muirua, revelam o esforço de adequação ao clima quente e húmido da região da Zambézia através da adequação de soluções tradicionais, como as paredes perfuradas, que são utilizadas tanto no conjunto fabril como no quarteirão Chuabo; assumem-se, ainda, outros dispositivos para assegurar sombra e ventilação aos espaços interiores, adoptando, na transição para o exterior, varandas profundas e cobertas, assim como a aplicação de brise-soleil. No pólo industrial, as opções de ordem construtiva, pensadas de forma a responder eficazmente às exigências do clima tropical, conduziram não só à elevação dos edifícios e à previsão de uma varanda envolvente à casa, coberta e substancialmente protegida por paredes em cerâmica vazada, como também ao aproveitamento do vão do telhado como caixa-de-ar ventilada. A implantação do aglomerado orienta-se norte-sul no sentido do controle da incidência solar e da captação das brisas dominantes, e os edifícios, com particular destaque para a messe, exploram formalmente as características necessárias a um máximo sombreamento e ventilação.

Embora utilizando os materiais disponíveis localmente, o conjunto Chuabo exigiu um aparato técnico construtivo de outra escala. Com uma área total de cerca de 22.000m2, estrutura em betão armado e trabalhos sofisticados nas múltiplas frentes edificatórias, recorreu sobretudo a mão-de-obra deslocada da metrópole. Com uma equipa residente de cerca de quarenta pessoas, incluía a direcção de obra – que contava com o arquitecto Figueirinhas Correia e com o engenheiro civil Ribeiro Costa, responsável por toda a gestão -, mestres e operários das várias artes. Esta equipa fez formação de artífices locais, tendo tido uma importante acção na qualificação do sector construtivo em Quelimane.

Se actualmente o núcleo da fábrica se encontra meio-abandonado e em lenta degradação, os blocos de habitação no edifício Chuabo em Quelimane, plenamente ocupados, estão profundamente atingidos pelos problemas que afectam toda a cidade, revelando infra-estruturas em falência e falta de manutenção. O hotel continua no entanto em actividade e dispõe, ainda, de condições admiráveis em termos da integridade original dos seus espaços e mobiliário – pese embora o passar dos anos, que está a levar ao limite a sua capacidade material de resistir ao tempo e aos usos. Ainda hoje, após décadas de abandono e em avançado estado de degradação, a messe é uma peça com uma presença extraordinária, a marca de uma modernidade que a história e paisagem africanas surpreendentemente conservaram.

O Complexo M&G e deve, pois, ser entendido dentro do contexto africano, num processo de transformação mais abrangente que se revia no desejo e na possibilidade de trabalhar segundo uma orientação verdadeira e progressista, através da concretização de obras pioneiras e com grande significado urbano e social.

 

Original de Ana Tostões e Maria Manuel Oliveira.

(FCT: PTDC/AUR-AQI/103229/2008)

Adaptação de Ana Tostões, Daniela Arnaut

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