
Fortificação
Kannur [Cananor], Kerala, Índia
Arquitetura militar
Em 1505, acabado de chegar à Índia, o vice-rei Francisco de Almeida decidiu erguer uma fortificação, obtendo a anuência do rei local, o Kõlathiri. A decisão teve origem no crescendo de tensão com a comunidade muçulmana, uma das mais importantes do Malabar. O sítio tinha boas condições naturais de defesa, reduzindo a necessidade de implantar um forte dispositivo militar. O assédio marítimo era impossível, já que a península era cercada de grandes rochedos, sendo a acostagem apenas viável na baía, ao passo que a frente de terra era reduzida. A fortaleza foi batizada Santo Ângelo, precisamente por estar situada sobre água, como o castelo de Roma. O dispositivo foi esboçado pelo vice-rei, que deixou a traça ao capitão Lourenço de Brito. Consistia numa muralha e num fosso que isolavam a península da terra firme. A terra e pedras recolhidas na escavação do fosso foram aproveitadas na edificação do muro, que se construiu combinando madeira e outros elementos perecíveis com pedra e cal. Foram reaproveitados materiais da desmantelada Fortaleza de Angediva, designadamente molduras de vãos provindas do reino. No início de 1506 os trabalhos estavam avançados, existindo um recinto defensivo fechado e uma torre de menagem. Segundo o cronista Gaspar Correia, o perímetro tinha planta quadrada, com pouco mais de oitenta metros de lado. Nas extremidades existiam quatro cubelos com um sobrado. A torre de menagem, com dois andares, implantava-se no centro do pátio. Em 1507, a capacidade militar da fortaleza foi posta à prova. A sucessão dinástica local ditou um herdeiro menos favorável aos portugueses e mais aberto a pressões muçulmanas. No decorrer do cerco e dos recon- tros travados a propósito do abastecimento de água, que se fazia num poço situado no exterior da fortificação, foi construído um túnel suportado por arcos de pedra, sob direção do mestre-de-obras Tomás Fernandes. Antes da derrota dos sitiantes foram abatidas as palmeiras que se encontravam junto à fortaleza para melhor utilização da artilharia. Em 1514 existiam já problemas de conservação da torre de menagem, erguida em alvenaria de pedra e barro, e a sua localização revelava-se desajustada à proteção do porto. Afonso de Albuquerque sugeriu, então, que esta fosse refeita de pedra e cal, no canto da fortaleza e contígua ao cais, mas cinco anos depois mantinham-se os problemas estruturais, levando ao seu abandono. Em 1520, o capitão Aires da Gama deu início ao plano gizado por Albuquerque, abrindo-se também uma cisterna e poços e instalando-se um grande forno de cal para as obras, lideradas pelo mes tre Pêro Álvares. O sistema defensivo de Cananor era então com‐ posto por três espaços distintos. A norte havia um vazio entre a fortaleza propriamente dita e a muralha e fosso exteriores, local de futuro desenvolvimento urbano. Aquelas estruturas incluíam um muro espesso equipado com bombardeiras, com duas torres nas extremidades, e uma cava com cerca de sete metros de largura. O segundo espaço era a fortaleza, dominada pela enorme torre de menagem, com balcão assente em cachorrada na face voltada a sul e nos vértices. Adossada à torre estava a casa do capitão, bem outras pequenas casas térreas. A torre implantava‐se no canto norte de um recinto conformado por muros de pouca espessura. Só no sector virado a terra havia uma composição mais robusta, com muro dotado de adarve e ameias de corpo largo. No lado oposto ao da menagem existia uma torre poligonal acasamatada com bombardeiras no nível inferior, de cronologia imprecisa. A extremidade ocidental da península constituía o derradeiro espaço da área fortificada. Não tinha inicialmente qualquer defesa edificada. O surgimento do poderio otomano levou à reparação da Fortaleza de Cananor, em 1526. A obra incluiu a edificação de dois baluartes na cortina exterior e o con‐ serto do fosso, refazendo‐se com pedra e cal as construções mais frágeis. Talvez date também desta época o muro desenhado por Correia em redor da parte ocidental da ponta. Estas iniciativas ficaram cristalizadas no desenho do cronista, salientando‐se o formato ultra‐semicircular dos citados baluartes, baixos, espessos e dotados de canhoneiras, representando um estágio mais evoluído na arte de fortificar da primeira metade de Quinhentos. As obras reformaram profundamente a estrutura defensiva externa do dispositivo militar, passando a centrar‐se aí o essencial da sua força. Este sistema defensivo manteve‐se quase inalterado. Em 1635, António Bocarro confirmou o seu perímetro como de pouco mais de quinhentos e sessenta metros, acrescentando que a fortaleza tinha os "muros muito imperfeitos", totalmente colapsados na banda do mar. A degradação vinha de finais de Quinhentos, dizendo‐se em 1613 que "está tão danificada que não tem nenhuma defesa", ou mesmo que "está quase no chão". Nesta data ponderou‐se o seu abandono, dados os custos da reedificação e a inexistência de um bom porto ou rio para abrigo de armadas. Na verdade, a fortaleza continuava a cumprir a sua função, como no ataque muçulmano de 1617. As obras de reparação determinadas pelo rei só tiveram curso nos inícios da década de 1620, sob a direção do engenheiro Júlio Simão, que reconstruiu o baluarte central na banda de terra. O baluarte mais importante continuava a ser o que confinava com a baía, denominado couraça por conduzir a um desembarcadouro, visto proteger a porta e confinar com o bazar dos mouros. Em 1635, segundo António Bocarro, a frente da baía era ainda protegida por outros elementos defensivos. Para além da fortaleza, os portugueses dispunham ainda das "tranqueiras de fora", uma cortina que cercava o arrabalde. Em 1558 foram consideradas velhas, pois constituídas "de taipas muito fracas, com alguns andaimes e guaritas". Em 1635 tinham cerca de 1.500 metros de perímetro, quatro de altura e muitas guaritas e baluartes. As obras pontuais da década de 1630 não serviram senão como paliativo, pelo que em fevereiro de 1663, face à ameaça holandesa e muçulmana, a fortaleza foi considerada indefensável, por ter "muros muito velhos e fracos" e "cava entupida", "tudo obra antiga". O núcleo mais antigo de Cananor desapareceu após a conquista holandesa. Estes reabilitaram sobretudo a frente de terra, aproveitando o fosso e substituindo as estruturas existentes por dois poderosos baluartes angulares opostos, reerguendo também alguns dos muros que contornavam a península.