Lat: 20.407872000646000, Long: 72.833369000912000
Daman [Damão/Damaun]
Guzerate, Índia
Enquadramento Histórico e Urbanismo
Damão é hoje um dos distritos do território da União Indiana de Damão e Diu, unidade administrativa que também compreende Dadra e Nagar Havely. Isso significa que não faz parte de nenhum dos estados. É uma realidade que decorreu da anexação dos últimos territórios sob soberania portuguesa pela União Indiana em 1961, sendo que Goa logrou instituir‐se como estado em 1987 e, assim, deixar de integrar aquela unidade. São dois enclaves situados a cerca de duzentos quilómetros um do outro (em linha reta através do Golfo de Cambaia), quase cidades‐território (Damão tem cerca de cinquenta e sete quilómetros quadrados), na costa do Gujarate, o estado indiano mais a oeste. Nos seus tempos áureos, o território dependente fazia fronteira direta com o império mogol.
Contudo, Damão fica apenas a cerca de cento e cinquenta quilómetros de Bombaim e cento e vinte de Baçaim, ambas no estado vizinho do Maharashtra. Dadra e Nagar Haveli constituem um distrito situado no interior, de dimensões muito superiores ao de Damão. Foram integrados no domínio português tardiamente e anexados pela União Indiana antes dos demais, em 1954. Têm em comum com Damão o Rio Sandalcalo.
A cidade de Damão está situada na foz desse rio, sendo por ele dividida em Moti Daman (Damão Grande), a sul, e Nani Daman (Damão Pequena), a norte. A dimensão é inversa à que resulta das medidas lineares e de superfície, mas direta no que respeita à monumentalidade, pois Damão Grande é a cidade contida dentro de um dos perímetros abaluartados simultaneamente de maior impacto e perfeição contidos nesta edição. Na frente de Damão Pequena foi erguida entre 1615 e 1627 uma pequena jóia da engenharia militar portuguesa, o Forte de São Jerónimo, o qual é objeto de entrada própria.
O Porto de Damão, desde sempre prejudicado por uma barra estreita e baixa, é ainda um dos pontos de encontro da vida social e económica da cidade, com especial relevo para o comércio, mas também para a pesca, com os seus barcos mantendo viva a tradição da carpintaria naval. Com efeito, as florestas de teca do interior fizeram com que até 1871 a cidade mantivesse um ativíssimo e reputado arsenal - uma Ribeira das Naus, como referem alguns documentos escritos e iconográficos - do qual saíram inúmeras embarcações. A ponte que une ambas as margens é já posterior ao período da soberania portuguesa, pois durante o domínio português a travessia fazia‐se em barcas.
A população foi sempre maioritariamente hindu, seguindo‐se a muçulmana e, por fim e muito diminuta, a católica. Distribui‐se por núcleos ou bairros, ainda que a comunidade cristã se tenha mantido na praça de guerra de Damão Grande e em algumas aldeias da periferia, preferencialmente no Campo, a sul. Nas suas últimas décadas, a administração colonial ergueu diversos edifícios para equipamentos em Damão Pequena, no que foi secundada por muitos privados com instalações para negócios e residências. Tentava‐se, em vão, recuperar do ciclo de profunda decadência a que a cidade fora votada, primeiro com a concorrência de holandeses e ingleses no Golfo de Cambaia, depois com o desenvolvimento de Bombaim e do seu porto pelos últimos a partir da sua cedência em 1661 pelos portugueses, logrando substituir o papel das cidades daquele golfo. Aliás, logo em 1687 a East India Company transferiu a sua sede de Surate para Bombaim. O golpe final foi a perda da Província do Norte face à incursão marata, sendo que o tratado de 27 de maio de 1739 permitiu aos portugueses conservar Damão, mas não o seu território. Em junho de 1783 a diplomacia portuguesa logrou, contudo, a concessão de uma relevante área territorial no interior, Nagar Havely, o bastante para lhe garantir auto-suficiência.
Na matriz, Damão Grande corresponde ao núcleo urbano ordenado e desenvolvido pelos portugueses, enquanto Damão Pequeno já existia e não é mais do que o resultado de um crescimento orgânico/aditivo autóctone, sem origem portuguesa, mas hoje com bastante influência, essencialmente ao nível do edificado. Mesmo os portugueses foram preferindo instalar‐se fora de Damão Grande, a qual deixaram para as instituições, ali acorrendo para se refugiarem e baterem pela defesa do posto quando atacado. Se a cidade intramuros nunca terá adquirido grande densidade ou sequer dinâmica urbana, designadamente comercial ou artesanal, a verdade é que o processo de abandono foi precoce e acentuado: dos cerca de 2.524 residentes de 1745 já só se contavam 385 em 1900. Hoje a maior parte da área está vazia ou mesmo com um paradoxal aproveitamento agrícola. Muitos dos edifícios, incluindo equipamentos, desapareceram, sendo árdua a reconstituição de localizações e formas. Por exemplo, após a extinção das ordens religiosas (1834) os governadores desmantelaram as casas franciscana e jesuíta para reutilizar os blocos de pedra em outras construções.
A localização estratégica em relação ao Golfo de Cambaia cedo colocou Damão na rota das naus portuguesas que tentavam controlar aquele espaço rico em comércio, com o principal centro portuário mogol na cidade de Surate que, apesar dos esforços, nunca se conseguiu dominar. O local de Damão, em si, nunca foi excepcionalmente rico senão em teca, produtos agrícolas (arroz, em especial) e nesse valor militar. Nas primeiras décadas, o objetivo foi controlar, ou seja, evitar a presença no local de bases inimigas, o que em 16 de dezembro de 1529 levou à tomada e mutilação do forte islâmico (abexim, abissínio), que havia sido erguido sobre a margem sul, frente à cidade propriamente dita. Cedo foi reocupado e reconstruído.
O forte foi de novo tomado em 1534, para quase de imediato ser entregue no âmbito do acordo com o qual o governador Nuno da Cunha obteve o domínio de Baçaim. Só em 1559, já com as cidades de Diu e Baçaim em franco desenvolvimento português, o vice‐rei Constantino de Bragança, visando proteger os relevantes domínios territoriais de Baçaim e apertar a rede de controlo e taxação das rotas marítimas do Golfo de Cambaia, conquistou a cidade, sendo que levaria mais três anos a controlar os territórios a ela afetos. Desde logo o forte foi assumido como centro de poder e compositivo da ocupação portuguesa, não sendo por acaso que ainda hoje ali permanece instalada a sede administrativa do território. Conformou‐se assim a Província do Norte no último ato de ampliação territorial portuguesa no Oriente da era da expansão, tal como a cidade portuguesa que de imediato ali despontou seria a última criada na Índia no Antigo Regime.
Após a tomada da cidade, foi construída uma paliçada em aterro e matéria vegetal, provavelmente segundo a linha que pouco depois iria ser seguida para a construção do perímetro abaluartado. Uma vez mais esse limite é ditado pelas características topográficas do sítio, que por sua vez haviam por certo determinado a sua escolha como forte. Isso porque do lado oeste encosta ao mar, de norte ao rio e de nascente a um pequeno pântano centrado num braço do rio. Só do lado sul, o do Campo, é que havia um acesso franco, o qual foi quartado pelo rasgamento de um fosso que prolongou aquele braço de água.
Como em 1582 o autor anónimo do Livro das Cidades e Fortalezas... registou, Damão era um "lugar raso sem muro nem cerca algua, sómente tem h~ua fortaleza pequena antigua que foy dos Mouros com quatro baluartes em que pousa o capitão, e de poucos annos a esta parte se começou acercar toda a cidade em roda com muitos baluartes à custa de h~ua imposição que se pôs nas mercadorias de hum por cento, e nos mãtimetos que saem para fora, e correse com esta forteficação com muita breuidade per ordem da camara da cidade". Neste excerto encontramos dois dados importantes: a fortaleza preexistente, obviamente muçulmana, era muito semelhante aos fortes manuelinos quadrangulares, com torreões cilíndricos nos ângulos (o de sudoeste é ainda visível), que se haviam erguido um pouco por todo o Império (recordemos os de Chaul e de Baçaím, entre outros); à data da redação do texto citado, os trabalhos da muralha abaluartada decorriam a bom ritmo, provavelmente estimulados pelo que se padecera no cerco mogol do ano anterior. Sabemos, contudo, que se prolongariam por alguns anos, mas isso é matéria da entrada seguinte.
Como habitualmente, a instalação de equipamentos e serviços públicos e dos conjuntos conventuais não se fez esperar. A arquitetura era, na generalidade, de mediana qualidade e de muito parca monumentalidade, tendo vigorado uma norma que, por razões de segurança, impedia que os edifícios fossem mais altos que a cortina das muralhas, o que nem sempre foi observado. Os jesuítas instalaram‐se sobre uma mesquita abissínia integrada no ângulo noroeste do forte; os franciscanos junto à Porta do Mar, os agostinhos no extremo nascente e, diametralmente opostos (sobre o mar), os dominicanos. Apenas o edifício dos agostinhos se conserva, ainda que muito adulterado, sendo que do convento dominicano existem ruínas expressivas. Bastante mais tarde (1695), também os hospitalários de São João de Deus se instalaram na cidade. Substituíam a Misericórdia na administração do hospital, mudando‐o para o lado nascente da única praça, ou seja, imediatamente do lado direito de quem entra pela Porta do Campo.
Com efeito, a praça abre‐se logo que se transpõe a Porta do Campo. Além do antigo hospital, temos a norte a igreja matriz (que chegou a ser sede diocesana), a poente o edifício do primitivo Recolhimento de Nossa Senhora das Necessidades, atual prisão e, a sul - sobre a muralha e, talvez por isso, ao contrário de tudo o mais, algo fora da esquadria geral da malha urbana - a Capela de Nossa Senhora do Rosário (inicialmente da Madre de Deus) e a Casa do Senado. São diversas as evidências documentais da existência de um pelourinho que caracterizava o terreiro desta praça, hoje transformado em jardim. Logo no vice‐reinado de Antão de Noronha (1564‐1568) foram concedidos a Damão privilégios de município similares aos de Évora, depois sucessivamente confirmados, e, através de regimento, instituídas obrigações militares de milícia, incluindo a manutenção de cavalos.
Também a Misericórdia foi instituída bem cedo, havendo notícia de já estar em pleno funcionamento em 1566. Instalou‐se frente ao colégio jesuíta, no quarteirão a poente, local onde, não por acaso, hoje se encontra o hospital da cidade. Das suas construções originais nada persiste, pois até a capela, que ainda cheguei a ver em 1994, sofreu uma considerável transformação. A alfândega teve as suas instalações no quarteirão que separa o forte da Porta do Mar, por conseguinte o mais perto do porto. Mais tarde foi ali construído o atual tribunal. A rua de sentido norte‐sul, tangente por nascente ao forte, conduz diretamente da Porta do Mar à Porta do Campo, os únicos acessos ao perímetro muralhado.
Do ponto de vista das instituições, temos assim evidência de terem sido criadas imediatamente após a ocupação do posto, o que se compagina com a própria definição geral do espaço urbano. De facto, e apesar de algumas semelhanças formais e processuais com outras cidades do Estado da Índia - Chaul e Baçaim, por exemplo - a cronologia e a morfologia urbana de Damão tornam claro que a implantação e estruturação da cidade ocorre num só momento e é contemporânea à definição do seu limite (posteriormente muralhado), sendo assim também inequívoca a existência, também inaugural no Estado da Índia, mas de forma alguma surpreendente na cultura urbanística portuguesa, de um preceito geral de regularidade. Nem mesmo o forte preexistente nos impede de declarar Damão como uma cidade fundada e planeada, pois a malha urbana, além de regular e ortogonal, apresenta‐se racionalizada, integrando‐o como preexistência que, aliás, determina a matriz morfológica.
Na realidade, foi o forte o dínamo dessa mesma regularidade, a qual parte desde logo do facto de estar implantado com uma rotação de cerca de menos dois graus em relação ao norte geográfico, divergência que podemos considerar desprezível. Tendo como ponto de partida ruas que lhe são tangentes, foi lançado um reticulado viário que define quarteirões tendencialmente quadrados e não todos quadrados, como habitualmente se tem dito. Num trabalho em curso verificamos, ainda com resultados provisórios e aqui muito resumidos, que se de facto é o forte a ditar o alinhamento dos quarteirões inseridos nas duas bandas que determina (através do prolongamento das ruas que lhe são tangentes), o espaçamento entre as demais ruas tem um incremento.
Passamos do sistema dimensional da preexistência, que é de algo em torno dos trezentos e quarenta palmos (metade do lado do quadrado do forte), para um outro sistema em que o lado tem trezentos e setenta palmos, o que gera quarteirões retangulares de 340 x 370. No entanto, devemos ter em conta que a primeira dimensão é necessariamente aproximada, pois foi estabelecida por uma cultura que usava unidades diferentes. Se lhes adicionarmos a largura das ruas para obtermos o dimensionamento estruturante do sistema - a eixo, por conseguinte - estas dimensões passam a ser 370 x 400. Ou seja, o incremento é o da própria largura da rua. E se tudo estivesse bem, nos ângulos deveríamos ter quarteirões com 400 x 400 (eixos). Porém, o sistema geométrico apresenta‐se ainda mais complexo, pois os quarteirões imediatamente a sul do forte são quadrados com 370 x 370 (eixos), o que também sucede na última fiada norte/sul do lado poente.
Resumindo, estamos ainda a avaliar até que ponto é que estas variações decorrem de um sistema geométrico complexo e coerente (coordenação polar, por exemplo), ou se são apenas fruto de um acaso. Mas isso não põe em causa o desígnio de regularidade, óbvio desde o primeiro olhar. A verdade é que a largura de trinta palmos para as ruas foi muito usada pela urbanística portuguesa, antes e depois, para situações de maior desafogo, mas não monumentais, e que o quarteirão com quatrocentos palmos em, pelo menos, um dos lados também não é nada estranho a essa mesma cultura prática. Tenha‐se ainda presente que, em tempo algum, a cidade teve uma densidade de ocupação que permitisse a consolidação do grosso do traçado em ruas. Ainda hoje, só uma ténue faixa entre as duas portas, com a largura máxima de dois quarteirões, tem alguma expressão urbanística. Contudo, os conventos e equipamentos acima listados cumpriram com o traçado regular, o que só por si demonstra que este foi instituído no início.
Mais do que a regularidade, o que é urbanisticamente mais relevante no caso de Damão é a sua pré‐concepção, até porque foi com base na realidade urbanística desta cidade que a ainda imberbe historiografia do urbanismo e da urbanística portugueses - a partir de uma hipótese registada, sob uma forma assumidamente impressiva, num pequeno ensaio por Mário Tavares Chicó (1956) - acriticamente passou a ver em alguns casos indo‐portugueses do século XVI a aplicação prática dos modelos renascentistas das cidades ideais. O recurso a alguma cartografia antiga, sem o seu cotejamento com a realidade concreta através de levantamentos atuais, bem com o total desconhecimento da cultura urbanística precedente a par com o facto, hipotético, da participação no processo de amuralhamento do engenheiro militar italiano João Baptista Cairato, fez a fortuna crítica dessa tese.
Acontece que, de acordo com cronologia comprovada, quando Cairato iniciou o seu trabalho na Índia (1583) já há muito o traçado urbano estava instituído e a construção da muralha em curso. Por outro lado, Damão é o único caso em que a ocupação portuguesa teve no seu seio o desígnio da construção de uma cidade, enquanto nos demais casos ou a cidade já existia (Goa, Diu) ou a ocupação foi gradual, ou seja, segundo a sequência (muito frequente), feitoria, fortaleza, equipa‐ mentos, tranqueira, etc., acabando, por vezes, por resultar em cidade (Cochim, Chaul, Baçaim).
O que é excepcional é, pois, repita‐se, o facto de se querer desde logo fazer cidade, sendo então adotados os procedimentos há muito comuns na cultura urbanística europeia e, assim, também portuguesa: arruar e casear (parcelar, lotear) segundo um padrão geométrico tendencialmente uniforme, mas flexível. Era também padrão fazer‐se cidade traçando a malha urbana sem relação geométrica com o traçado do seu perímetro defensivo. Infelizmente, parece não ter permanecido o suficiente do casario comum para que um dia se possa vislumbrar o sistema de parcelamento, o que só com arqueologia se poderá tentar. Para já, resta‐nos observar a morfologia urbana apenas à escala do quarteirão. E um dos aspectos mais curiosos é, precisamente, como se formou a única praça por subtração de um deles, não numa posição geometricamente relevante, mas sim funcional: imediatamente após a entrada. É um facto que, a par com o total descolamento formal entre o traçado urbano e a linha do perímetro muralhado, estabelece uma distância conceptual entre Damão e os invocados modelos das cidades ideais - então muito recentes e ainda por experimentar - abissalmente superior à que a separa de múltiplas realizações anteriores. Falta ordem, hierarquia, clareza formal e funcional, concepção unitária da muralha e espaço urbano, etc.
De qualquer forma, o que acima resumidamente se expôs faz com que Damão seja um caso excepcional no âmbito dos processos de urbanização portugueses no Oriente e um marco na urbanística portuguesa de sempre. E nisso sem dúvida pesa a imagem que o seu perímetro fortificado lhe conferiu a posteriori, devendo‐se‐lhe também a própria salvaguarda do pouco do casco e traçado urbanos que subsistem. E se a análise da muralha e traçado urbano em separado nos foi útil, é como o conjunto que são que devem ser fruídos e apreciados.
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