Goa

Este texto foi originalmente escrito, pelo coordenador do respetivo volume, para a edição impressa como introdução à área geográfica em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. Deverá ser interpretado em articulação com o texto de introdução geral do respetivo volume.

 

Goa é o nome do vigésimo‐quinto (1987) e mais pequeno estado da União Indiana. Já foi o topónimo da cidade, de que restam hoje alguns dos principais edifícios religiosos e muitas ruínas e vestígios arqueológicos. Esse sítio é hoje Velha Goa, por oposição a Nova Goa, designação que os portugueses não lograram fazer vingar sobre Pangim – topónimo de sempre da atual capital – quando em 1843 para ali mudou formalmente a capitalidade. Isso depois de, com exceção para os religiosos, cujas ordens entretanto haviam sido extintas nos territórios portugueses (1834), já tudo e todos ali estarem há bastante tempo. Mas há ainda o sítio de Goa Velha, o centro daquele território antes de Velha Goa, cuja referência mais segura é o Seminário do Pilar, erguido sobre o primitivo templo de Xri Govexvar.

De certa forma, em conjunto esses três locais contam a história e desenham a Ilha de Tiswadi (ou Tissuary), unidade territorial litoral com uma instabilidade geográfica acentuada, devida à intensa ação sedimentar dos dois rios que a delimitam: o Mandovi, pelo norte, o Zuari, pelo sul; os quais se ligam pelo sistema alagado do canal Cambarjua, que separa Tiswadi do continente e dela faz ilha e um território de acesso possível em apenas oito passos, alguns fluviais (Pangim, Naroa, Passoseco, Benastarim, Ribandar, Daugim, Carambolim e Agaçaim). Esses dois rios descem da extensa cordilheira dos Gates – os contrafortes do Decão, planalto central ou meseta indiana – carreando materiais sedimentares e matéria orgânica que invade a densa rede hídrica de Tiswadi e os seus campos aluvionares na estação das chuvas ou da monção (junho a setembro). Processo geológico que ao longo de milhares de anos formou o anfiteatro orográfico aberto ao Índico, a meio da costa ocidental do Hindustão, que é o coração do território de Goa. Situação e paisagem que se repetem ao longo de todo o Concão, a faixa de território que vai de Mangalore para norte até Bombaim e tem Goa ao meio.

Esse núcleo territorial central baixo é constituído por três unidades territoriais continentais além de Tiswadi. Ao norte, desenvolve‐se uma área com variações topográficas suaves e relativamente seca, a província de Bardez, que a norte é delimitada pelo Rio Chaporá. A sul encontra‐se a península em planalto de Mormugão, que abriga aquela ilha, seguindo‐se‐lhe uma faixa de território litoral, quase plana e verdejante, a província de Salcete. Pelo interior, Bardez e Salcete são parcialmente delimitadas pelos cursos do Mandovi e Zuari e respectivos afluentes. No conjunto formam o que ainda hoje é designado por Velhas Conquistas, por oposição às Novas Conquistas que as envolvem integralmente, ou seja, do litoral aos Gates. Assim se juntou ao todo os limites naturais que o estado de Goa hoje tem.

Desde há séculos, a história de Goa tem sido escrita por diversas formas um número incontável de vezes. Os primeiros viajantes estrangeiros, os primeiros relatórios encomendados pela coroa portuguesa, os primeiros historiadores da expansão, os primeiros historiadores da identidade goesa, tal como os mais recentes, tiveram e têm de o fazer. É impossível abordar a presença portuguesa ou europeia na Ásia sem referir excertos dessa história. Aqui mesmo, logo no texto inicial, foi inevitável fazê‐lo. Nas entradas que se seguem será ainda mais, designadamente as relativas às capitais, Goa e Pangim. Será pois impossível escapar à repetição, tal como abordar todos os aspectos marcantes. É também inviável dar uma ideia do que é o manancial de conhecimento já disponibilizado sobre os mais diversos aspectos da história e cultura de Goa, sendo que a bibliografia reunida no final deste texto é apenas um esboço fundamentado no que mais diretamente o informou. Nas breves referências geográficas contidas nos parágrafos anteriores, ficaram desde logo indiciados alguns elementos dessa mesma história, os quais agora servirão de guião para esta breve e errática contextualização.

Como vimos inicialmente, a conquista de Goa em 25 de novembro de 1510, pelo governador Afonso de Albuquerque, ocorreu no âmbito do processo de formação da rede de pólos marítimos de apoio ao trato, gizado nos primeiros anos da presença portuguesa na Ásia, ou melhor, mal se formou uma percepção de como tudo era e funcionava. Goa era então um próspero porto e a segunda cidade do sultanato de Bijapur, que a integrava depois da cisão do sultanato de Bahmani, que em 1469 a conquistara, bem como os respectivos territórios, ao império hindu de Vijayanagar. Foi então que a cidade foi mudada da margem norte do estuário do Rio Zuari para a margem sul do Rio Mandovi, onde os portugueses a tomaram. A mudança foi feita para um local mais no interior do que o original, e também de mais difícil acesso por barco, o que só viria a piorar. É que, na realidade, o Zuari tem um estuário mais aberto e profundo que o Mandovi, com uma barra mais bem protegida de ventos nefastos. Tem também sofrido ao longo do tempo uma muito menor mutação por assoreamento. Estes dados são críticos para uma mais completa compreensão do processo histórico do território.

A conquista inicial de Goa correspondeu apenas ao domínio permanente da Ilha de Tiswadi. Mesmo assim, foi um feito inaugural, pois até então os portugueses apenas detinham soberania sobre pequenos espaços, na maior parte das vezes paredes‐meias com os sobera‐ nos que lho haviam permitido. Em Goa tiveram, pela primeira vez, a soberania integral sobre um pedaço de território resultante de uma conquista e não de uma concessão. Esse facto poderá ter sido determinante ou determinado pela procura de um local onde assentar um centro de poder, uma capital. Até então, o centro do poder português na Ásia funcionava de forma algo instável em Cochim. Na realidade, os governadores e vice‐reis permaneciam mais tempo no mar do que em terra, o que já levou a designá‐los como “vice‐reis flutuantes”.

O passo seguinte ocorreu num segundo ciclo, um segundo patamar, que é já o da formação de um império, o que correspondeu ao florescimento do Estado da Índia. Por exemplo, a par com a extraordinária ação do mais longo governo/vice‐reinado da Índia – o de Nuno da Cunha, entre 1529 e 1538 – foi executado o primeiro plano de ocupação território‐colonial do Brasil, através da divisão do território e concessão em capitanias. Também para a Ásia se compreendera que era vital obter alguns domínios territoriais, o que levou não apenas à conquista e formação da Província do Norte, mas também à anexação de Bardez, Mormugão e Salcete, feito concretizado em 1543. Desde a conquista de Goa estes territórios haviam mudado de posse por diversas vezes, mas agora a sua concessão a Portugal fora protocolada e ali dada como definitiva. Essas ações haviam sido precedidas da mudança do centro de decisões português na Ásia de Cochim para Goa em 1530, ao que se seguiu, em 1534, a criação da diocese, a primeira na Ásia. O aparelho do embrionário Estado da Índia começou então a avolumar‐se. Em suma: sem que o termo e o conceito tivessem já contornos claros, a verdade é que Goa passou então a ser a capital da Ásia portuguesa.

A gestão operativa de Bardez e Salcete acabou por ser entregue, respectivamente, aos franciscanos e aos jesuítas, pois a criação da Companhia de Jesus havia sido reconhecida pelo Papa em 1540. Centraram‐se respectivamente nas cidades‐mercado de Mapusa e Margão, esta mais aristocrática (brâmane e chardó) que a primeira. Na realidade, o ordenamento do espaço goês é essencialmente devedor da ação missionária, o que, apesar do crescimento exponencial, imigração maciça e decorrente descaracterização nas últimas décadas, ainda é claramente perceptível a quem percorra o território. O mesmo não se poderá dizer sobre a área das Novas Conquistas, diversa em termos geográficos, mas que objetivamente não esteve sujeita a essa ação durante o período de maior intensidade missionária.

Na realidade, escassas décadas depois da integração em Goa desses territórios novos, as ordens religiosas foram banidas de todo o espaço português, sendo que os jesuítas já o haviam sido em 1759. Por outro lado, já em 1755 haviam sido estabelecidos alguns direitos no âmbito da liberdade religiosa, designadamente o da construção de templos de outras confissões e, em 1761 (como prelúdio ao plano da reforma pombalina do Estado da Índia de 1774) foram concedidos a todos os naturais os mesmos direitos que aos cidadãos portugueses ou de origem portuguesa. Assim, desde o início que a ação portuguesa nessa nova área do território goês teve um novo contexto, um novo paradigma em que até o proselitismo cultural tinha um sinal enfraquecido. Estava em pleno florescimento uma identidade local, goesa.

Conforme temos vindo a verificar, as Novas Conquistas decorrem essencialmente de dois fatores, duas necessidades: equilibrar, sob os mais diversos aspectos, o Estado da Índia após a perda da Província do Norte em 1740; fazer recuar até à linha de defesa natural, que são os Gates, as fronteiras naturais do território, assim minorando consideravelmente as possibilidades de ocorrência de ataques por terra, que então eram uma realidade cada vez mais frequente. Ambos os objetivos foram plenamente lançados com a ação desencadeada pelo vice‐rei Pedro Miguel de Almeida e Portugal (gov. 1744‐1750), conde de Assumar, marquês de Castelo Novo e marquês de Alorna, este último um dos mais importantes títulos que conquistou, mercê do êxito da campanha de que fora incumbido pela governação de D. João V.

Este processo teve pelo meio – decretos de 16 de Janeiro e de 10 de fevereiro de 1774, planos de 1774 a 1777, obras de saneamento e construção de cerca de duas dezenas de casas até ao final da década – o intento pombalino de se reabilitar a cidade de Goa, no âmbito do já referido processo reformista para a Restauração do Estado da Índia – uma das expressões usadas é “restaurá‐lo e fundá‐lo de novo”. Tudo sintetizado em seis “instruções”, cada uma das quais com um conjunto de “remédios”. Foi um desígnio frustrado, globalmente pelos ingleses e localmente pelos goeses, que no fundo já estavam a estruturar, sem planeamento e com um excesso de espontaneidade, uma nova capital em Pangim. Dele se dá conta nas entradas relativas à cidade de Goa e a Pangim. Mas faz‐nos recuar a uma questão – que ali só pôde ser indiciada e apenas surge aflorada na entrada relativa à fortificação de Mormugão – a qual consiste nas más características do sítio de Goa para a urbanidade capital que lhe era exigida.

Além das dificuldades crescentes que a sua defesa levantava, o Rio Mandovi assoreara‐se ao ponto de haver longos períodos do ano em que as naus de longo curso, precisamente as de maior calado, não podiam fazer os cerca de dez quilómetros que separam a barra situada frente a Pangim de Velha Goa, isso para além de essa barra estar fechada durante os meses da monção. Acrescia‐lhe a falta de salubridade do ar e da água, pois o local era dos mais húmidos, quentes e menos varridos por ventos do território. Os surtos epidémicos eram frequentes e a mortalidade elevada, o que cedo foi levando os que podiam a encontrar moradas alternativas, designadamente a caminho da barra, primeiro em Panelim, de imediato em Ribandar, antes que o surto de Pangim fosse potenciado pela construção da Ponte Linhares, na década de 1630. Entre eles contavam‐se os arcebispos e os próprios vice‐reis, que tiveram um magnífico palácio em Panelim, depois adaptado a hospital militar e hoje desaparecido. Mas foram as principais famílias goesas que fizeram de Ribandar um verdadeiro subúrbio de palácios, os quais quase não deixaram rasto. Juntaram‐se‐lhes igrejas, um convento, e o Hospital da Misericórdia.

Em suma: o sultão que no século XV escolheu o local que hoje é Velha Goa para ali reinstalar a capital do território, fez uma má escolha, se vista à luz dos padrões reinóis. A verdade é que após a conquista os portugueses aboletaram‐se nela, pois estava equipada e servia os desígnios iniciais. Claro que se sabia da necessidade de adaptações e melhoramentos que, aliás, foram desde logo empreendidos. Mas não se previra a extraordinária explosão de crescimento, que quase de imediato sofreria e na prática a tornou inviável.

A península‐planalto da margem sul do Zuari, Mormugão, teria sido a melhor opção, pois além da sua excelente exposição solar e aos ventos e do facto de ter em frente um porto natural com as melhores condições durante todo o ano, apresentava uma característica comum à maior parte das instalações portuguesas na Ásia e não só: o facto de ter uma estreita frente de contacto com o continente, o que era fundamental para a defesa. Face ao abandono gradual de Velha Goa e às crescentes ameaças de segurança, os três membros do conselho de governo interino do triénio 1668‐1671 propuseram ao rei a construção de uma capital em Mormugão, onde já existia um forte desde 1624 e entretanto reforçado.

O vice‐rei seguinte, Luís de Mendonça Furtado e Albuquerque, conde do Lavradio (gov. 1671‐1677), seguindo as instruções de D. Pedro II consultou os notáveis de Goa e informou o rei da impossibilidade de construção de uma cidade capaz de substituir a monumental Goa. Argumentou com os custos de transferência dos faustosos complexos conventuais, objeção que veio a revelar‐se decisiva. No ano seguinte ao ataque marata de 1683, que chegou a fazer crer estar‐se a viver o fim do domínio português na Índia, o vice‐rei Francisco de Távora, conde de Alvor (gov. 1681‐1686), usando também esse argumento retomou a ideia e renovou a consulta, tornando‐se um entusiasta do projeto. Apenas parte do clero se manteve contra e em 1686 foi enviada para a corte uma proposta de plano, a qual está desaparecida. Antes de qualquer resposta, Francisco de Távora foi chamado a Lisboa para chefiar o Conselho Ultramarino. No exercício dessas funções conseguiu a aprovação de D. Pedro II para a causa da transferência, a qual foi ordenada em 1687.

Uma vez mais o vice‐rei em funções, Rodrigo da Costa (gov. 1686‐1690) colocou as forças vivas de Goa de acordo com a sua posição, a qual no caso era contrária, expressando‐se através do pedido de meios materiais e humanos que tudo resolvessem. Também o sempre exaurido Senado da Câmara discordava. Até 1712, ano em que Francisco de Távora abandonou o cargo, a determinação régia foi sucessivamente reconfirmada, incluindo a demolição de edifícios em Goa para reutilização dos materiais na construção da nova capital, sendo os vice‐reis frequentemente admoestados pela falta de empenhamento, o que levou um deles, Caetano de Mello e Castro (gov. 1702‐1707), a habitar em Mormugão. Aliás, deve‐se ao seu interesse pela causa o único período em que a obra teve alguma expressão e ritmo. Porém, sucedeu‐lhe num segundo mandato Rodrigo da Costa (gov. 1707‐1712) e o processo parou.

O relatório de dezembro de 1707 do administrador da obra, o jesuíta Ignácio de Andrade, refere não apenas infraestruturas (fortificações, fontes, poços, cais), mas também armazéns, tercenas, alfândega, hospital, palácio para o governo com claustro e capela e uma praça, de tudo dando medições. Refere ainda as ruas Nova e das Flores e ainda as “Cazas, que chamão do engenh.rº”. Grosso modo era o estado em que ainda estavam as coisas quando foram realizados os levantamentos do início de Oitocentos que se conhecem, onde surgem identificadas estas construções, implantadas sem qualquer relação perceptível de racionalidade. Con‐ tudo, os resultados práticos foram escassos e sem o empenho do conde de Alvor os trabalhos foram sucessivamente suspensos e retomados, até que, em 1734, o vice‐rei Pedro de Mascarenhas, conde de Sandomil (gov. 1732‐1740), informou a coroa do fiasco das tentativas e do sorvedouro de dinheiro em que o projeto se transformara, propondo como alternativa o sítio de Pangim. Solução que o futuro revelaria apenas ter ficado em suspenso. Futuro que veio a revelar o quanto a escolha de Mormugão era acertada. Estão por ali o aeroporto, o porto e o principal terminal ferroviário do estado, tendo para tal sido criada na década de 1880 uma cidade na zona baixa, Vasco da Gama.

Entre múltiplas referências importantes que este episódio nos dá para a melhor compreensão de algumas das entradas que se seguem, importa aqui destacar o quanto é mítica a imagem da Goa Dourada que foi sendo construída, em especial após a sua substituição efetiva por Pangim e consequente ruína. Real é a de Roma do Oriente, não só pelo edificado, mas fundamentalmente pela capitalidade católica que representa e deteve em relação a toda a Ásia. Por trás da magnificência dos seus edifícios religiosos, da qual ainda muito se conserva e reflete em algumas das entradas que se seguem a este texto, existia uma cidade que se afantasmava dia‐a‐dia. O clero não queria sair, e não saiu, a não ser quando já mais ninguém restava e o triunfo do liberalismo anti‐clerical o expulsou. O abandono pela esmagadora maioria da população dos núcleos portugueses originais de Damão e Diu pelas cidades nativas/originais, que acompanhámos em entradas na região anterior, deveu‐se, entre outras razões, ao facto de serem desconfortáveis máquinas/praças de guerra. O abandono de Goa não.

Quase naturalmente, Pangim acabou por ser a capital. O clero já não a pôde dotar da monumentalidade de Velha Goa e o Estado da Índia fez dela uma típica cidade colonial, com um conjunto de equipamentos que, salvo algumas adulterações mais significativas e o desaparecimento, por exemplo, da Capela de Nossa Senhora de Fátima e do Edifício da Navegação, se mantêm no meio do caos provocado pelo desenvolvimento não previsto e mal planeado das últimas décadas. Contudo, muitos elementos de conjuntos edificados foram transladados de Velha Goa para serem reaproveitados em Pangim.

O facto de a soberania portuguesa se ter mantido até mais tarde, fez com que, essencialmente nos núcleos urbanos mais importantes, tenham continuado a surgir edifícios com novos programas e equipamentos, os quais, pese embora a sua escala e simplicidade, são por vezes surpreendentes nas soluções e gramática arquitetónica com que foram concebidos e erguidos. Felizmente há quem esteja a registar e estudar essas últimas concretizações em património edificado do Estado da Índia e tenha concordado em partilhar esse conhecimento connosco. Com efeito, a arquitetura goesa de origem portuguesa mais recente tem sido e continua a ser um património mal amado. Como prova bastará dizer que entre a data da definição da lista de entradas para este volume e o seu envio para processamento editorial foram demolidos quatro itens, que por isso tiveram de ser retirados.

Da leitura dos últimos parágrafos poderá resultar o equívoco de o património arquitetónico e urbanístico de origem portuguesa em Goa ser essencialmente urbano, o que não é verdade. Com efeito e conforme se poderá aquilatar pelas entradas que se seguem, a parte mais considerável do património goês relevante é de implantação rural, ou melhor, territo‐ rial. A erudição, magnificência e monumentalidade dos edifícios religiosos de Velha Goa nunca ofuscou, mas tão só inspirou a arquitetura produzida no resto do território, onde algumas vezes também surgem obras com esses registos. Aliás, é curioso verificar como o âmbito de uma arquitetura vernacular acaba por ser aqui relativamente reduzido. Tal é particularmente interessante porque não só confirma a matriz rural com que o Estado da Índia colonizou e explorou o território, como nos dá a dimensão miscigenada da sociedade resultante, a qual acabou por se autonomizar do quadro anterior, mas também do português e colonial. A arquitetura de Goa, em especial a religiosa e, assim, necessariamente católica, não é popular nem indo‐portuguesa, mas apenas goesa, o que só não tem sido reconhecido por ser incómodo para os demais, portugueses incluídos. Felizmente é também esta uma matéria já devidamente estudada e publicada por especialistas que colaboraram neste volume.

É uma arquitetura de território porque interfere, desenhando, na paisagem. A paisagem de Goa – e aqui refiro‐me necessariamente apenas à área das Velhas Conquistas – é diversa de qualquer outra na Índia, mesmo quando as condições naturais são idênticas. A forma de repartir o território, de o arrotear e infraestruturar para a agricultura e circulação é específica. A avaliar por inúmeras descrições e algumas fotografias, é também diversa do que era há cerca de um século atrás, quando o coberto florestal era manifestamente menor, designadamente em torno das estruturas dos sistemas defensivos, entretanto tornadas obsoletas e assim reabilitadas e arruinadas como atrações turísticas.

E vem agora a propósito uma questão técnica de fundo que marca todo o edificado da região anterior ao betão: a natureza branda, cor ferrosa e textura simultaneamente frágil e indomável da única pedra disponível para construção: a laterite. É um material que, por razões de conservação, exige cobertura, ou seja, reboco. Os portugueses introduziram técnicas de cal como ligante que até então eram desconhecidas na Índia, o que melhorou a eficácia dos revestimentos e a durablidade das alvenarias, embora implique uma caiação muito frequente, no mínimo de dois em dois anos, pois os fungos motivados pelas monções são inclementes. Mas a ausência de uma pedra que proporcionasse uma boa lavra e resistisse aceitavelmente às violentas intempéries da zona condicionou a expressão arquitetónica, sendo comuns os edifícos integralmente rebocados e caiados, mesmo nas zonas com guarnição trabalhada. Apenas em obras de maior orçamento era possível a utilização de pedras importadas, designadamente de Baçaim, o que só pôde acontecer depois da respectiva integração nos domínios sob soberania portuguesa em 1534. Mesmo nessas, a cantaria aparelhada ou lavrada surge apenas em situações de remate (cunhais, cornijas, nervuras ou fechos de abóbadas) e em vãos.

No meio do turbilhão de conceitos, história e histórias, ideias e casos que assim se forma de cada vez que procuro formar uma ideia‐imagem integrada do que é o património edificado de origem ou influência portuguesa em Goa, ou seja, goês, torna‐se‐me pelo menos evidente o quanto é diversificado e vasto, mas ao mesmo tempo coerente e uno entre si e com a própria paisagem e território. E por isso impõe‐se‐me ainda aqui deixar bem claro como em muitos casos foi difícil decidir o que aqui teria entrada ou não, pois se o critério fosse o mesmo usado para as demais subáreas deste volume, o número de casos registados seria muitíssimo maior, o que parcialmente se procurou suprir através de um conjunto de entradas iniciais sobre programas e tipologias, tarefa dificultada pela profusão de estudos e, à escala da Ásia, do número de investigadores que trabalham sobre a arquitetura de Goa, sendo árduo optar.

Por fim, uma nota relevante: ao contrário de um conhecido dito, quem viu Goa tem de ver Lisboa, pois na realidade têm muito pouco em comum, a não ser a sua complementaridade, o facto de durante séculos terem sido dois pólos nodais de um império colonial que, mais do que uniformizar, desenvolveu a diferença, mesmo quando a origem da ação era una, ou seja, portuguesa. Só assim se pode explicar uma evidência: a identidade goesa.

Walter Rossa

Loading…